Glossário online traz palavras que nomeiam sentimentos complexos em diversas línguas
“SERENDIPITY”, ATO ou capacidade de fazer descobertas felizes por acaso, é uma palavra da língua inglesa que obriga tradutores a quebrar a cabeça e gastar um punhado de vocábulos para dar conta do mesmo sentido.
No entanto, seria “serendipity” uma prova eloquente de que o inglês é uma língua mais concisa, mais expressiva, mais profunda e mais bacanuda do que a nossa, como já vi —várias vezes— apregoado por aí?
É claro que não. “Serendipity” prova apenas que, no ramo da felicidade acidental, os angloparlantes inventaram uma palavra que dá conta de uma experiência específica. Esse tipo de condensação extrema pode ocorrer em qualquer língua. No caso do português, para ficar num só exemplo, tradutores coçam a cabeça toda vez que encontram o substantivo “cafuné”.
“Ato de correr suavemente os amada.” Essa (boa) definição de cafuné consta do glossário de palavras “intraduzíveis” de todo o mundo que, compilado pelo psicólogo inglês Tim Lomas, está disponível online (www.drtimlomas. com/lexicography).
Especialista em “psicologia positiva”, Lomas apresenta seu trabalho como ferramenta de autoajuda na busca da felicidade, afirmando que os termos que garimpou em diversas línguas se relacionam todos ao bem-estar. Hmm, sei...
Ainda bem que a propaganda é meio enganosa. A “lexicografia positiva” do inglês não se limita ao lado solar da natureza humana e tem seu maior interesse num fenômeno linguístico fascinante, a síntese quase milagrosa de estados emocionais complexos em poucas letras —e, claro, no que essas pílulas de sentido concentrado revelam sobre as culturas que as produziram.
Às vezes a relação é tão evidente que nos induz ao clichê. O frio da Escócia está impresso na pele arrepiada da palavra “curglaff”, definida
Há casos em que a ligação entre palavra e cultura é mais sutil. O que terá levado o sânscrito a parir um vocábulo curioso como o verbo “asteya”, pequena obra-prima de precisão em negativo que significa “não roubar, abster-se de tomar o que não lhe pertence”?
E por que terá sido em japonês, e talvez apenas nele, que uma paisagem interior nebulosa como “premonição de enamoramento alemão “Schadenfreude”, que carrega o sentido pouco simpático —mas bem realista— de “prazer com a desgraça dos outros”, tem frequentado livremente textos escritos em inglês.
E quanto a “saudade”, palavra (supostamente) intraduzível de estimação da língua portuguesa, será que Lomas a reconhece? Sim, o orgulho lusófono pode dormir sossegado. Se bem que aquele termo russo, “toska”, não sei não...