Descaso com a Cinemateca cria obstáculos à produção de filmes
FOLHA
O Ministério da Cultura e a organização social Roquette Pinto assinaram neste mês um contrato para que a entidade se torne a gestora da Cinemateca Brasileira. A instituição detém cerca de 80% da memória audiovisual brasileira, e é responsável por sua preservação e difusão.
O Brasil adota uma política de arquivamento de imagem diferente da de outros países, que costumam usar o método mais seguro de diversificação do acondicionamento.
Aqui há concentração na Cinemateca Brasileira, o que gera risco concreto de falha de segurança com o acervo.
O formato também congestiona e deteriora a capacidade de atendimento da Cinemateca nas incessantes demandas de produções audiovisuais brasileiras que necessitam de imagens históricas para ilustrar suas produções.
Em 2002, Carlos Magalhães tomou posse como diretorexecutivo do órgão e, nos 11 anos de sua gestão, modernizou essa instituição arcaica, aparelhando-a para serviços mais eficientes de arquivamento, copiagem e exibição
Ele também comandou projetos de restauração de filmes muito importantes para a nossa memória cinematográfica. A Cinemateca, nesse período, foi uma instituição de excelência, à altura das melhores que operam fora do Brasil.
Em 2013, com a destituição de Magalhães e paulatinamente da equipe que ele montou, a Cinemateca voltou a apresentar as mesmas dificuldades da maioria das instituições públicas culturais do país.
De 2013 a maio de 2015, a instituição viveu um período de interinidade, no qual funcionários abnegados e dedicados, conscientes da importância do seu trabalho e do dever essencial de servir ao público, continuaram atendendo às demandas do setor.
Não posso deixar de mencionar duas funcionárias exemplares, Vivian de Luccia e Kátia Dolin, que fizeram esse trabalho com o auxílio de colegas. Com a posse de Olga Futemma em maio de 2015, as coisas mudaram no órgão.
As duas servidoras foram afastadas e o departamento de atendimento à consulta e obtenção de materiais audiovisuais passou a ser gerido por um técnico em preservação fílmica, Rodrigo Mercês.
É um ótimo técnico, mas como operador de instituição pública parece não saber, infelizmente, que um dos pilares para o sucesso do ofício deve ser sempre o diálogo.
O trabalho de produtoras, diretores e pesquisadores audiovisuais que lidam com a instituição se tornou um pesadelo. Não há resposta para emails, telefonemas ou pendências. Alega-se falta de funcionários e de recursos.
Toda instituição pública, seja municipal, estadual ou federal,sempre está em crise. Também houve demissões no Arquivo Nacional e TV Cultura. O Museu da Imagem e do Som do Rio atrasou salários por meses, mas as solicitações que recebeu foram atendidas.
O descaso dessa gestão da Cinemateca com o atendimento e com a difusão do acervo guardado ali, tem viés político.
Isso começou oito meses antes do incêndio em um dos depósitos de filmes de nitrato da Cinemateca em 2016. Logo, não é possível atribuir o péssimo atendimento ao caso. Vale registrar que não há ameaças à preservação do acervo.
Produtoras agora precisam contratar advogados para entrarem com medidas legais a fim de obter acesso a materiais fílmicos aos quais têm direito.
A produção de uma obra de ficção sobre Wilson Simonal, portadora da autorização do detentor dos direitos patrimoniais de um filme depositado naCinemateca,levoucincomeses sem obter acesso à cópia. A situação só mudou depois de ameaças de processos.
Há também o caso da Copacabana Filmes, detentora dos direitospatrimoniaisde“OsFuzis”, que queria ter acesso a essa obra digitalizada pela Cinemateca. Passou quatro meses sem resposta. Só obteve o acesso a partir da mesma ameaça.
O mesmo ocorreu com um documentário sobre o ator e diretor Hugo Carvana realizado pela família do cineasta.
Mais triste ainda é o que acontece hoje, quando dezenas de projetos sabendo desse imbróglio desistem de obter materiais de arquivo, em detrimento de terem um projeto final melhor. Afinal, qual é a vocação dessa instituição?
Senhor ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, a Cinemateca Brasileira é uma instituição primordial para a nossa cultura, e essa importância vai muito além das atitudes desrespeitosas da direção atual com profissionais e cidadãos brasileiros que trabalham com material de arquivo.
Esperamos sinceramente que, com o contrato com a Roquette Pinto, seja nomeada uma gestão. Já não é mais possível recorrer a advogados a cada pesquisa ou pedido.
A Cinemateca é uma instituição federal e tem a obrigação de cumprir o seu papel de fornecer acesso, dentro das vias legais e preceitos de preservação, a todo o seu acervo.
A falta de verba não pode ser motivo para a falta de respeito com produtores, diretores, pesquisadores audiovisuais e qualquer cidadão brasileiro. ANTONIO VENANCIO