Folha de S.Paulo

Que isso aqui é uma banda.”

- SILAS MARTÍ

Ela cantou com o rosto todo coberto por uma touca de lã branca em frente a uma bandeira da Rússia com a frase “xoxota é o novo pinto”.

Nadezhda Tolokonnik­ova, a vocalista do Pussy Riot, abriu o show mais lotado desta edição do festival South by Southwest, o festival-quermesse dos hipsters em Austin, nos Estados Unidos, pedindo desculpas pelos modos meio rudes desse grupo de artistas que há anos vem denunciand­o os abusos de poder que partem do Kremlin.

“Não somos músicos, nem sabemos tocar nenhum instrument­o. Somos artistas políticos”, ela disse no palco todo escuro, no início do show. “Só cantamos em cima de bases que gravamos de bandas punks britânicas. O que fazemos é ativismo, mas acham VISCERAL Sem luzes, só com uma lanterna na mão que às vezes usava para iluminar o próprio rosto mascarado, Tolokonnik­ova fez uma performanc­e visceral e encharcada de ironia ao lado de dançarinos anônimos, tal qual boxeadores se esmurrando sobre esteiras de corrida imaginária­s.

Toda a fúria tem motivo. Essas garotas, pelo menos duas delas, passaram dois anos atrás das grades por cantar numa das igrejas de Moscou uma música contra Vladimir Putin, o presidente russo que deve ser reeleito neste mês.

No palco de um dos maiores festivais de música do planeta, elas se identifica­ram como ex-presas políticas de um regime totalitári­o, lembraram que duas integrante­s da banda acabam de ser encarcerad­as na Crimeia, a província da Ucrânia anexada pela Rússia, e se esforçaram para fazer da aparição em Austin mais protesto do que show.

Seus versos em russo não precisaram de tradução. A plateia de modernos e descolados que se espremeu no pátio de um bar da capital do Texas para ver a apresentaç­ão dançou sem parar, levantando os braços em sinal de vitória ao longo de uma performanc­e com gosto de soco atrás de soco no estômago.

Tudo teve a pegada e sonoridade eletrônico-cavernosa do que elas vêm gravando nos últimos tempos, como a canção mais nova, “Bad Apples”, uma parceria com Dave Sitek, do TV on the Radio.

Ele é o mesmo nome, aliás, por trás de “Chaika”, a faixa que marcou a passagem definitiva desse grupo de garotas raivosas do undergroun­d russo para os holofotes do mundo do entretenim­ento.

Em turnê pelos EUA, o Pussy Riot afiou seu inglês como nunca e vem fazendo protestos também pelas bandas de cá, num momento da história em que o que parece serem laços estreitos entre o presidente Donald Trump e Putin está cada vez mais explícito.

Lá pelas tantas, a voz de um homem numa gravação tocada no show diz que o político no comando da Casa Branca acaba de renunciar depois de uma série de escândalos. Na fantasia da banda, seu colega russo também deixa o Kremlin acuado por uma onda de grandes protestos.

O mundo paralelo das Pussy Riot, afinal, é marcado pela vitória das mulheres sobre políticos como eles, “covardes minúsculos”, dizem seus versos. Um dos pontos altos da noite, aliás, foi “Vagina”, a canção mais explícita impossível que incita mulheres a usarem a sua voz nas urnas.

Não por acaso, Chelsea Manning, a ex-militar americana que trocou de sexo, assumindo o gênero feminino, abriu essa performanc­e efusiva, subindo ao palco para chamar os integrante­s do grupo com um discurso em defesa do ativismo num momento mais do que conturbado.

Na saída do show, falando a jornalista­s, Tolokonnik­ova não disfarçou a emoção. “A situação política na Rússia agora é um desastre”, disse, num raro instante em que a pose de heroína fraquejou e seus olhos quase encheram de lágrimas. “Mas pelo menos demos o nosso recado.”

 ?? Hutton Supancic/Getty Images ?? Nadezhda Tolokonnik­ova canta após cobrir nome de patrocinad­ores com bandeira no palco
Hutton Supancic/Getty Images Nadezhda Tolokonnik­ova canta após cobrir nome de patrocinad­ores com bandeira no palco

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