Fatih Akin aborda mal-estar europeu em seu melhor filme
Há uma curiosa semelhança entre dois filmes em cartaz no país, o alemão “Em Pedaços”, vencedor do Globo de Ouro de longa estrangeiro, e o britânico-americano “Três Anúncios para um Crime”.
Ambos têm como protagonista uma mãe que vive o luto devido ao assassinato de parente próximo e que encampa vingança ao se ver desamparada pelas instâncias oficiais.
Mas se em “Três Anúncios” o rancor é direcionado às instituições (a polícia), no longa alemão a ira se volta aos perpetradores do crime.
“Em Pedaços” acompanha Katja, uma alemã que perdeu o marido, um descendente de curdos, e o filho pequeno de ambos num atentado cometido por um grupo neonazista —grande inversão étnica quando comparada a obras americanas sobre terrorismo.
O diretor, o hamburguês filho de turcos Fatih Akin, já figurou numa lista de potenciais alvos elaborada por uma organização de neonazistas.
“Encarei aquilo como um elogio. Se estavam enfurecidos é porque eu devia ter feito tudo corretamente. Meu trabalho é incomodá-los”, diz o diretor de filmes que em geral enfocam personagens migrantes, caso de “Soul Kitchen” e “Do Outro Lado”.
Para o novo longa, Akin se inspirou nos autos do processo contra o NSU, grupo alemão de orientação hitlerista que cometeu uma série de assassinatos contra imigrantes no começo dos anos 2000.
“Mais do que acrescentar ao debate [sobre o neonazismo na Alemanha], espero que o filme crie um debate, que hoje não existe”, disse o diretor à Folha, no último Festival de Cannes, em maio de 2017. “Há um escândalo político por trás disso.”
Ele se refere às revelações, que vieram à tona em 2012, de que o serviço secreto alemão destruiu arquivos ligados ao grupo de supremacistas horas antes de ter que entregá-los à Justiça.
Para Akin, o nacionalismo alemão é “mais intenso” do que se leva a crer fora do país. “O número oficial já é grande, mas há subnotificações: casos de agressões que não são classificados como crimes de ódio.”
O vaivém judicial ocupa parte considerável da história. E Akin deixa claro não acreditar firmemente no sistema jurídico de seu país. “Acredito na Justiça como parte fundamental da democracia. Seu poder, contudo, tem limites.”
O roteiro se atém ao momento em que os tais limites se impõem, e a “ideia de uma justiça individual colide com a da oficial”, como descreve Akin.
Vencedora do prêmio de melhor atriz em Cannes, Diane Kruger interpreta Katja, a mãe enlutada que opta por se vingar por conta própria. A temática assustou patrocinadores, diz Akin, e parte da crítica.
“Quando americanos ou coreanos fazem filmes sobre vingança, a motivação é pouco explorada. O que me interessava era explorar os estágios que levam alguém a essa atitude extrema.”
FOLHA
Quis o destino que “Em Pedaços”, longa de Fatih Akin, estreasse em circuito comercial paulistano depois de “The Square” e “Sem Amor”, representantes máximos do cinema do mal-estar europeu.
Os sinais do mal-estar são tratados com maior frontalidade no filme de Akin, e por isso talvez seja injusto colocá-lo no balaio da chamada hanekização do cinema europeu, em que o mal-estar é trabalhado com uma elegância dúbia e uma falta de frontalidade que muitas vezes indica uma terrível falsidade.
Já é suficientemente terrível que Akin tenha sido um dos responsáveis pela popularização da câmera tremida no cinema europeu com “Contra a Parede”, seu primeiro sucesso. Deixemos de lado, por enquanto,essecontextoetentemos nos concentrar no longa “Em Pedaços”.
Nele, com uma câmera felizmente mais sossegada e atenta, acompanhamos Katja (Diane Kruger, elogiadíssima pelo papel), uma alemã que vê o marido curdo e o filho do casal morrerem numa explosão criminosa dentro do bairro turco de Hamburgo.
Desiludida, ela parece não encontrar forças para viver. Encontra um duvidoso refúgio em drogas pesadas. Até que um amigo é informado de que a bomba teria sido obra de neonazistas. Ela, então, passa a viver pela vingança.
O filme se estrutura em três atos bem distintos (“A Família”, “Justiça”, “O Mar”), precedidos por um prólogo em que vemos o casamento de Katja na prisão. O marido foi preso por tráfico de drogas e eles se conheceram porque ela era usuária e cliente dele.
Após os créditos, que firmam o nome do filme com a mesma fonte que estampou tantos LPs de heavy metal desde os anos 1980, surge o primeiro ato. Este se dedica principalmente a mostrar a luta para superar o luto.
No segundo ato, temos o julgamento. É nele que percebemos melhor a podridão da sociedade, com advogados e empresários mancomunados para salvar jovens criminosos empenhados, como eles, num ideal de limpeza étnica.
É um momento duríssimo. O mal-estar é explicitado de modo que nos mostra a fragilidade das boas ações ante a crueldade do mundo.
Sobre o terceiro ato melhor não falar, sob o risco de antecipar coisas demais. Basta dizer que ele provavelmente determinará adesões entusiasmadas ou rejeições ferozes à obra. Creio que a segunda hipótese é mais provável.
O espectador que se ater só aos fatores cinematográficos perceberá que Akin realizou seu melhor filme do ponto de vista estrutural. Ainda que se perca emreações dos personagens, sobretudo de Katja, cujo comportamento nem sempre faz sentido, mesmo sob desespero e desejo de vingança. (AUS DEM NICHTS) DIREÇÃO Fatih Akin ELENCO Diane Kruger, Numan Acar PRODUÇÃO Alemanha/França, 2017, 16 anos AVALIAÇÃO regular