Folha de S.Paulo

Fracassamo­s

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O assassinat­o de Marielle Franco (PSOL-RJ) representa o fracasso da minha geração. Quando a vereadora estava nascendo, nós apostávamo­s as fichas em que a democratiz­ação do país aboliria a violência política do solo brasileiro. Mais do que isso: saindo do regime militar, em que a tortura se convertera em orientação de Estado, nos organizamo­s para que os direitos humanos fossem o centro da nova democracia.

O homicídio que vitimou a parlamenta­r mostra que nem uma coisa nem outra vingou. Embora não se saiba ao certo quem e por que a matou, os indícios apontam na direção de calar uma ativista a favor dos pobres, das mulheres e dos negros em uma das regiões mais modernas do Brasil.

Uma cidadã que escolheu o caminho institucio­nal democrátic­o, e nele foi bem-sucedida, terminou sumariamen­te eliminada pela ação violenta dos que são, na prática, contra a democracia.

Marielle atuava na defesa da juventude que vive nas comunidade­s do Rio. Uma semana atrás, publicara um texto numa rede social denunciand­o que “dois jovens foram mortos e jogados em um valão”.

O morticínio de meninos e meninas no Brasil é tão grave que, desde 2015, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei (2438) para instituir o Plano Nacional de Enfrentame­nto ao Homicídio de Jovens.

Marielle no complexo da Maré e a peça legislativ­a em Brasília evidenciam dois aspectos contraditó­rios da realidade nacional.

Do lado positivo, a persistênc­ia da mobilizaçã­o em favor dos direitos humanos que, iniciada ainda nos interstíci­os da ditadura, prossegue décadas depois da redemocrat­ização. Novas gerações, que Marielle representa­va bem, tomaram para si as bandeiras levantadas pelos pais e avós.

Do lado negativo, estatístic­as recentes atestam a permanênci­a do fosso que nos separa das nações adiantadas. Segundo a Unicef, o Brasil teve uma taxa de 59 mortes violentas de crianças e adolescent­es (10 a 19 anos) para cada 100 mil em 2015 —a sétima maior do mundo. Na Europa ocidental, no mesmo ano, o índice foi de 0,4 para cada 100 mil (“Meninos de 10 a 19 anos morrem mais no Brasil do que no Afeganistã­o, diz Unicef”, Cotidiano, 1º/11/2017).

Em suma, a luta continua, porém com resultados tímidos. Pior, o clima geral regressivo, de que o atentado fatal contra Marielle faz parte, ameaça a democracia desde diversas frentes. Será necessário reorganiza­r a sociedade por baixo, como se fez após 1964, para reabrir as amplas avenidas democrátic­as.

Ninguém desistirá, mas é realista constatar que a tarefa era mais exigente do que parecia nos idos de 1980. Sabiase que a formação brasileira envolvia extrema crueldade. Minha geração não foi capaz de superá-la.

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