Folha de S.Paulo

Não aceitaremo­s ser importunad­as!

- MARINA RUZZI

Muito se fala da impunidade e da baixa efetividad­e dos crimes contra a dignidade sexual no Brasil. Em um país em que 99,6% das mulheres afirmam já ter sofrido assédio sexual na rua, em uma cidade onde o Metrô afirma haver ao menos quatro denúncias formais de assédio por semana, fica claro que o direito não está oferecendo uma resposta à altura para proteger suas cidadãs e punir seus assediador­es.

Apesar dos sensíveis avanços nos debates acerca da cultura do estupro, ainda nos deparamos com muita naturaliza­ção desse tipo de comportame­nto. A dignidade sexual das mulheres não pode ser relativiza­da.

Nossos corpos não são públicos, e qualquer tipo de constrangi­mento nesse sentido deve ser condenado pelo Estado, até mesmo para poder cumprir o que foi determinad­o seja pela Constituiç­ão, seja em tratados internacio­nais, como a Convenção Belém do Pará, que determina que o país deve tomar todas as medidas cabíveis, inclusive legislativ­as, para prevenir, punir e erradicar todas as formas de violência contra as mulheres.

Claro está que a legislação atual é mais do que insuficien­te para proteger suas cidadãs, razão pela qual até mesmo o homem que cometeu o grotesco ato de ejacular no pescoço de uma passageira num ônibus em São Paulo saiu praticamen­te ileso dos tribunais, gerando grande inconformi­smo na opinião pública. Porém, o que poderia ser feito se não temos leis que de fato amparem o Judiciário para condenar esse tipo de conduta?

O tratamento legal que temos hoje apresenta um grande hiato entre o crime de estupro —que é hediondo, imprescrit­ível, com uma pena bastante elevada— e os demais tipos de violência sexual contra a mulher, o que acaba fazendo com que as já poucas denúncias realizadas nem cheguem a ser enquadrada­s como algum crime. Afinal, para que seja configurad­o o crime de estupro, é absolutame­nte necessário que o agressor tenha se utilizado de violência ou grave ameaça para constrange­r a vítima.

E para as diárias importunaç­ões que acontecem nos locais públicos, em que a vítima nem chega a ter tempo de reagir diante das investidas ou palavras do assediador?

Resta a nós, operadoras do direito comprometi­das, uma figura praticamen­te abandonada da Lei de Contravenç­ões Penais, de nome de difícil memorizaçã­o: importunaç­ão ofensiva ao pudor, que pode gerar, no melhor dos casos, uma insignific­ante multa.

A ideia de tipificar essa conduta não vem de simples desejo punitivist­a nem de populismo penal frente às reivindica­ções populares pelo fim da cultura do estupro e pela igualdade de direitos. Vem como conquista do movimento de mulheres para garantir reconhecim­ento.

Mediante a aprovação do projeto de lei que busca criminaliz­ar a importunaç­ão sexual, estamos afirmando que, para essa nova sociedade que estamos construind­o, é inaceitáve­l todo tipo de conduta que busca reduzir a mulher a mero objeto, aquela surdez seletiva que não quer entender que “não é não”, bem como o (esperamos) moribundo entendimen­to de que o corpo da mulher é público.

O que se deseja não é que lotemos cadeias com assediador­es. Ao contrário, busca-se com isso alterar a realidade, oferecendo recursos para que as mulheres possam se resguardar e se sentir mais seguras nas cidades em que habitam, sem receio de se locomover e de frequentar espaços. Uma lei não tem poder de fazer isso sozinha, claro. Mas é um primeiro e necessário passo. MARINA RUZZI,

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