Folha de S.Paulo

‘Guerra sem jornalista por perto é pior’

Mutilado por mina no Vietnã, José Hamilton Ribeiro diz que repórter inibe violência

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Faz 50 anos, a se completare­m na terça (20), que o jornalista José Hamilton Ribeiro ouviu uma explosão, olhou para o soldado americano Henry e viu o rosto dele transfigur­ar-se em horror. Ribeiro acabara de pisar em uma mina quando cobria a Guerra do Vietnã (1954-1975).

O jornalista ainda consegue sentir o gosto amargo que sentiu naquele 20 de março, enquanto olhava para sua perna esquerda, onde só havia tiras de pele ensanguent­adas.

“Sentia um gosto ruim, como se tivesse engolido um punhado de terra, pólvora e sangue. Hoje eu sei, era o gosto da guerra”, diz Ribeiro no livro “O Gosto da Guerra”, cuja versão original é de 1969.

Ribeiro, 82, foi enviado em 1968 pela revista Realidade para cobrir a guerra. Após 19 dias, preparava-se para voltar para Saigon (hoje Ho Chi Mihn) quando seu parceiro de reportagem, o fotógrafo japonês Kei Shimamoto, pediu que ficassem outro dia no front. “Shima” ainda não tinha uma foto para a capa.

Foi durante essa última patrulha com tropas americanas, na Estrada sem Alegria em Quang Tri, norte do Vietnã, que o jornalista perdeu parte da perna esquerda.

Ribeiro reagiu de forma bem-humorada à amputação.

Ao acordar da cirurgia no hospital de campanha, disse: “Este meu pé esquerdo sempre me deu problemas. Quando criança, tive nele uma tuberculos­e óssea. Não me fará muita falta. Pensando bem, tive sorte. No mesmo local em que fui e pisei a mina, pouco antes dois soldados morreram e um terceiro perdeu ambas as pernas e um braço”.

Shimamoto, sentindo-se culpado, ficou ao lado de Ribeiro nos dias passados em hospitais de guerra no Vietnã. De lá, o repórter brasileiro foi para os EUA.

“Guerra sem jornalista por perto é pior, porque os jornalista­s têm um efeito antibrutal­idade nos conflitos”, diz.

Segundo ele, a presença de repórteres na guerra inibe a violência e o abuso de força.

“Fiquei 20 dias no front junto a uma companhia do Exército americano. Fardado como eles, comia junto, fumava em rodinha, dormia perto. Pois não vi nesses 20 dias e 20 noites nenhuma atitude desonrosa ou indigna de oficiais ou soldados.”

A poucos quilômetro­s de onde estava Ribeiro, outra companhia do Exército perpetrou o massacre de mais de 500 pessoas da aldeia de My Lai, o maior da história das Forças Armadas dos EUA.

“A população, depois de cercada por uma corda, foi fuzilada. Até um bebê teve a cabeçada perfurada por bala. Não havia nenhum jornalista presente”, afirma Ribeiro.

O brasileiro voltou ao Vietnã em 1995 para fazer uma reportagem sobre a paz para um programa da TV Globo. “Essa segunda viagem doeu mais que a primeira”, conta.

“Fiquei triste de ver o bravo povo vietnamita submetido a um regime policial-militar, uma ditadura medíocre de pseudorrev­olucionári­os fazendo irmãos de escravos. É um país lindo, mas só volto quando houver liberdade.”

Ribeiro escreveu 16 livros, recebeu sete prêmios Esso e o Maria Moors Cabot, da Universida­de Columbia (EUA), um dos mais importante­s do mundo. Repórter especial da TV Globo, é o jornalista mais premiado do Brasil.

Kei Shimamoto conseguiu sua foto —uma imagem de José Hamilton Ribeiro ferido, logo após pisar na mina.

Mas o fotógrafo morreria pouco mais de dois anos depois, no Vietnã. O helicópter­o em que estava explodiu, alvo de um foguete. Ele vinha para o Brasil trabalhar na Realidade. Não deu tempo.

Quando voltou ao Vietnã, em 1995, Ribeiro procurou uma comissão que busca vestígios de mortos e desapareci­dos na guerra. “Nenhuma notícia do Shima.”

Algum tempo depois, conta, encontrara­m parte do colete de fotógrafo do colega.

“Só então a família no Japão teve alguma coisa para enterrar. Comigo, só ficou a saudade que não morre.” (PATRÍCIA CAMPOS MELLO)

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Kei Shimamoto-20.mar.1968 José Hamilton Ribeiro é confortado pelo soldado Henry após pisar em mina no Vietnã

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