Folha de S.Paulo

Marielle Franco

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; OSCAR VILHENA VIEIRA terça: Vera Iaconelli; quarta: Ilona Szabó de Carvalho; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

OS DIREITOS humanos sempre estiveram sob ataque no Brasil. À medida em que grupos tradiciona­lmente destituído­s de direitos se insurgem contra a discrimina­ção, a violência e a humilhação cotidiana, os ataques se tornam mais contundent­es. Seus líderes são hostilizad­os, ameaçados e, alguns deles, eliminados. Foi o que aconteceu com Santo Dias, Chico Mendes, Dorothy Stang e, ao que tudo indica, com Marielle Franco.

A boçalidade que liquidou essas vidas e as de centenas de defensores de direitos humanos no campo e nas cidades nas últimas décadas é apenas a face mais visível do arbítrio e da violência a que estão submetidos, todos os dias, muitos daqueles que habitam as periferias sociais brasileira­s, formadas em sua imensa maioria por negros e pobres.

Numa sociedade injusta, marcada pela profunda e persistent­e desigualda­de, pelo racismo, pela banalizaçã­o da vida e pela constante tentativa de subordinaç­ão das mulheres, não é surpreende­nte que setores que lutam pelos seus privilégio­s e pela manutenção de sua dominação sejam tão refratário­s à ideia de que todas as pessoas devem ser tratadas com igual respeito e consideraç­ão. Por isso atacam os direitos humanos.

Essa tensão é mais aguda quando o tema é o crime. Desde que o Estado brasileiro começou a perder o controle sobre a criminalid­ade violenta, nos anos 1980, surgiram muitas vozes obstinadas a desqualifi­car e responsabi­lizar os Indispensá­vel cobrar a responsabi­lidade daqueles que se dedicam a hostilizar as causas que Marielle defendia defensores de direitos humanos pela tragédia da segurança pública. Essas mesmas vozes passaram a estimular o arbítrio policial, a apoiar milicianos e a aplaudir grupos de extermínio. A lógica é jogar a população vulnerável contra os defensores de direitos humanos, mascarando a omissão do próprio Estado no cumpriment­o de suas obrigações no campo da segurança pública e justifican­do uma ação cada vez mais repressiva nas comunidade­s mais pobres.

Lamentavel­mente, muitos políticos aderem de forma irresponsá­vel a esse discurso. Para serem eleitos vendem a ideia de que a melhor forma de enfrentar o crime é relaxar os limites legais do aparelho repressivo. É dar mais liberdade às polícias. É cerrar os olhos para o arbítrio.

O que esses políticos não dizem à população é que o arbítrio policial e a corrupção andam juntos; que a violência ilegal por parte do Estado não é um instrument­o eficaz contra a criminalid­ade. Ao contrário, elas rapidament­e se associam e se fundem, com a única finalidade de explorar, extorquir e aterroriza­r a sociedade. O resultado é o caos na segurança, que já vitimou mais de 1 milhão de brasileiro­s nos últimos 20 anos.

Marielle ingressou na militância em direitos humanos quando uma amiga foi vítima de uma bala perdida numa troca de tiros entre policiais e traficante­s no Complexo da Maré. Ao longo dos últimos anos tornouse uma líder na luta contra a discrimina­ção, a violência e o arbítrio nas comunidade­s do Rio de Janeiro. Foi morta, não se sabe por quem.

É urgente que se apure a responsabi­lidade penal por esse grave crime. É isso que milhares de pessoas, não só no Brasil, foram às ruas exigir. Não devemos nos descuidar, no entanto, de cobrar a responsabi­lidade política de todos aqueles que nas últimas décadas têm se dedicado a hostilizar as causas defendidas por Marielle.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil