Federalização de crime é caso raro no país
Criado há 14 anos, instrumento transfere investigações estaduais para Polícia Federal e Ministério Público Federal
Procuradora-geral da República cogita pedir o uso dessa medida na apuração do caso da vereadora Marielle
Criado há 14 anos por uma emenda à Constituição, o instrumento jurídico que permite federalizar a apuração de crimes contra os direitos humanos foi raramente utilizado no Brasil, apesar de pedidos cada vez mais frequentes de familiares de mortos e desaparecidos de diferentes Estados brasileiros.
O tema voltou à discussão agora diante dos assassinatos da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, no Rio. A PGR (Procuradoria Geral da República) estuda pedir a federalização dessa investigação.
“O pedido de federalização é um passo que vai ser avaliado oportunamente, na medida em que todas essas investigações se desenrolem. A nossa expectativa é de que isso não seja necessário”, afirmou a procuradora-geral da República, Raquel Dodge.
Um dia antes, ela havia afirmado que o caso necessitava de “todas as forças investigatórias”. “Certamente, a participação da Polícia Federal é importante nesse episódio, porque o crime no Rio é relativo a todas as áreas.”
Por esse dispositivo da federalização, tecnicamente chamado de IDC (Incidente de Deslocamento de Competência), a Polícia Federal e o Ministério Público Federal assumem a condução do inquérito, que passa a tramitar na Justiça Federal. Cabe à PGR suscitar ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) incidentes do gênero. Os ministros do STJ é que decidem pelo acolhimento ou não da medida.
Até 2015, segundo o último levantamento oficial feito sobre o assunto, da Secretaria de Reforma do Judiciário, vinculada ao Ministério da Justiça, haviam ocorrido apenas quatro pedidos do gênero, dois dos quais acabaram rejeitados pelo STJ, incluindo a apuração sobre o assassinato da missionária norte-americana e defensora dos direi- tos humanos Dorothy Stang, no Pará, em 2005.
Apesar da repercussão que o crime gerou dentro e fora do país, os ministros do STJ entenderam que não era necessário federalizar a apuração.
Em abril de 2015, havia 49 pedidos de federalização, enviados por diversos setores, como organizações não governamentais, aguardando uma avaliação da PGR. ANTECEDENTES Os dois casos aceitos, segundo o estudo de 2015, foram as investigações sobre o assassinato, em janeiro de 2009, do advogado, ex-vereador e ativista de direitos humanos Manoel Mattos, a tiros de espingarda na praia de Acaú, em Pitimbu (PB), e do crime premeditado, em 2013, do promotor de Justiça de Itaíba (PE) Thiago Faria Soares.
O caso Mattos, que fazia denúncias contra grupos de extermínio, foi julgado cinco anos após a federalização e seis após o crime, em tribunal do júri no Recife (PE). Duas pessoas foram condenadas e três, absolvidas. O julgamento sobre o assassinato do promotor ocorreu três anos depois do crime, com duas condenações e uma absolvição.
Dois especialistas no tema do IDC, o ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles, autor do primeiro pedido de federalização do país, no caso Stang, e o advogado Flávio Crocce Caetano, ex-secretário de Reforma do Judiciário, afirmam ver, no caso dos assassinatos de Marielle e Gomes, os requisitos necessários para a federalização.
“Para uma vítima que estava denunciando tanto a Polícia Civil quanto a Militar, me parece que está correta a ideia de federalizar. O IDC foi criado para quando não houvesse uma isenção das forças de segurança. Vamos lembrar que um dos argumentos para a intervenção no Rio foi justamente a ideia de que a segurança pública estava toda contaminada”, disse Caetano.
Segundo o advogado, em 2014 foi feito um amplo estudo sobre o IDC, a cargo do advogado Guilherme Assis Almeida, porque era uma das queixas frequentes de familiares de mortos e desaparecidos no Rio que chegavam ao governo federal.
Cláudio Fonteles disse que “no quadro vivido pela segurança no Rio, é bastante plausível” a federalização. Segundo o ex-procurador, um dos critérios básicos para o pedido de federalização são “indicadores concretos da inércia por envolvimento sistemático de forças de segurança”, incluindo crimes com “envolvimento de políticos, de milícias compostas por policiais e de policiais”, quadro que se ajusta à situação do Rio.
“No Rio, hoje o quadro é ainda mais complicado pela falência total da segurança pública”, disse Fonteles.
O ex-procurador ponderou queafederalizaçãopoderiaser deixada de lado caso o governo do Rio apresentasse medidas concretas em curto tempo.
“Tem que ser coisa rápida. O estado tem que dizer bem claramente ‘estamos fazendo isso e aquilo, as nossas linhas de investigação são essas’. Não tem isso de dizer ‘é secreto’. Muitas coisas não são secretas. O governo do estado tem que mostrar coisas concretas, reais, não promessas, para resolver o crime”, disse.
“Não digo que deve apresentar os autores do crime, mas o que está fazendo para chegar até eles”, completou o ex-procurador-geral.
Fonteles disse que no julgamento do pedido de federalização do caso Stang, em 2005, houve “pressão violenta” contrária de procuradores-gerais de Justiça nos estados, que temiam perder espaço para a PGR. O STJ decidiu por unanimidade contra a medida.
COLUNISTA DA FOLHA
A desembargadora Marilia Castro Neves, do Rio de Janeiro, escreveu nesta sexta (16) numa rede social que a vereadora Marielle Franco (PSOL), assassinada nesta semana, “estava engajada com bandidos”.
Afirmou ainda que o “comportamento” dela, “ditado por seu engajamento político”, foi determinante para a morte. E que há uma tentativa da esquerda de “agregar valor a um cadáver tão comum quanto qualquer outro”.
A magistrada fez a afirmação em um comentário em um texto publicado pelo advogado Paulo Nader na rede social, em que ele afirmava entender a comoção gerada pela morte de uma “lutadora dos direitos humanos e líder de uma população sofrida”.
Um grupo de advogados que leu o comentário começou uma campanha nas redes sociais para que a desembargadora seja denunciada ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
Castro Neves afirmou à Folha que apenas deu a sua opinião como “cidadã”. Ela afirma ainda que nem sequer tinha ouvido falar de Marielle até a notícia da morte. “Eu postei as informações que li no texto de uma amiga”, afirma. por causa da intervenção federal no estado, que completou um mês nesta sexta (16), desistiu da viagem com receio de que o ato pudesse ser interpretado como uma tentativa de apropriação política da tragédia.