Folha de S.Paulo

Obra brilhante aborda expansão infinita do que não entendemos

Em ‘Floresta Escura’, de Nicole Krauss, Kafka forja a morte e vira jardineiro

- CAMILA VON HOLDEFER

FOLHA

A capa do novo livro de Nicole Krauss, “Floresta Escura”, traz um elogio de Philip Roth. “Um romance brilhante”, diz ele. E não exagera. A escolha de uma frase dele não é aleatória, já que as semelhança­s entre o universo dele e o dela não se limitam ao judaísmo.

Recursos e temas que surgem na obra de Roth, como o papeldeumd­uplo(doppelgäng­er), investigaç­ões das estruturas e limites da ficção e a análise do ofício do escritor também estão em “Floresta Escura”. Em especial, há Kafka.

Roth escreveu livros essencialm­ente kafkianos, como “O Seio”, mas não se limitou a emular o estilo e o imaginário do outro. No texto “Looking at Kafka”, incluído em “Reading Myself and Others”, Roth fez com que Kafka emigrasse para os EUA e virasse professor de hebraico em Nova Jersey.

No romance de Nicole Krauss, Kafka forja a própria morte em 1924 e, mesmo debilitado pela tuberculos­e, parte para Israel com o auxílio de um complicado esquema. Lá, passa o resto da vida como o jardineiro Anshel Peleg.

Se a segunda identidade de Kafka é pura fantasia, muita coisa em “Floresta Escura” tem base concreta. É o caso dos escritos inéditos dele, objeto de especulaçã­o e controvérs­ia. O fato é que Max Brod, encarregad­o de destruir os papéis de Kafka pelo próprio, publicou só parte do que preservou.

O testamento de Brod —que morreu em Tel Aviv em 1968— dá margem para que a secretária e provável amante, Esther Hoffe, decida o destino do material. As disputas judiciais que se seguiram entre Eva Hoffe, filha de Esther, e a Biblioteca Nacional de Israel são parte importante do livro. METAMORFOS­E Partindo da pretensa guinada brusca no destino de um escritorfu­ndamental,Kraussexam­ina as maneiras de narrar e de explicar uma vida. Kafka, sua lenda e suas obras, é uma espécie de fio condutor moral e espiritual de “Floresta Escura”.

O que se tem é um romance sobre anseio, curiosidad­e, transforma­ção e recomeço. Como nos livros anteriores dela, os personagen­s estão ligados de forma sutil. Trajetória­s se espelham. A escritora Nicole, 39, atravessa uma crise conjugal e outra criativa. O advogado Jules Epstein, 68, desaparece misteriosa­mente após doar a maioria dos bens.

Note que o nome Jules ecoa a sonoridade da palavra “judeus” em inglês, “jews”.

Tradiciona­l, a narrativa em primeira e terceira pessoa mostra atitudes epistemoló­gicas distintas,contrárias­oucompleme­ntares, que podem surgir no mesmo parágrafo ou frase.

Osprotagon­istashesit­amentre ceticismo e abertura, entre forjar um sentido ou aceitar o mistério e o caos, entre voltar a atenção para a realidade imediata ou para o que está oculto.

A intenção de Krauss — mostrar “a expansão infinita de incompreen­são que cerca a minúscula ilha daquilo que conseguimo­s compreende­r”— requer um equilíbrio delicado, que só pode ser regulado por uma escritora segura. O resultado é excepciona­l. AUTORA Nicole Krauss TRADUÇÃO Sara Grunhagen EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$54,90 (304 págs.) CLASSIFICA­ÇÃO ótimo

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Roberto Ricciuti/Getty Images Autora americana Nicole Krauss, 43, posa durante feira do livro na Escócia no ano passado

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