Folha de S.Paulo

A cidade de São Paulo tem tal abundância de aberrações que nenhuma delas, por si só, chama a atenção

- COLUNISTAS DA SEMANA: domingo: Drauzio Varella, segunda: Luiz Felipe Pondé, terça: João Pereira Coutinho, quarta: Marcelo Coelho, quinta: Contardo Calligaris, sexta: Vladimir Safatle

SÃO PAULO tem tal abundância de aberrações que nenhuma delas, por si só, chama a atenção. Lugares e valores tidos até dias atrás por veneráveis dão lugar a bizarrices. E ninguém liga. Como o fato de a falsa cultura ter se aboletado no Caaguassu no último domingo (11). Onde iremos parar?

Iremos parar na avenida Paulista. A reta de quase 3 km onde ela fica era chamada de Caaguassu, “mato alto” em tupi-guarani. Foi ali que Joaquim Eugênio de Lima, uruguaio formado em agronomia na Alemanha, traçou a avenida e vendeu os lotes em torno à elite paulistana.

Inspirada no barão Haussmann, o prefeito que rasgou bulevares na Paris de Napoleão 3º, São Paulo se modernizou enquanto preservava a segregação: a Paulista foi projetada num platô arejado, mas a ralé foi tocada para a margem de riachos alagadiços e várzeas infectas.

Lévi-Strauss, que morou a uma quadra da Paulista nos anos 1930, comparou-a à avenue Foch. Ligando o Bois de Boulogne ao Arco do Triunfo, nela passaram temporadas Rothschild, Onassis, Mobutu e FHC (num apê da família de Abreu Sodré).

Na inauguraçã­o, em 1891, ninguém morava na Paulista. As benfeitori­as precederam os palacetes: duas pistas largas, fileiras de magnólias e plátanos, chão de pedregulho­s brancos. O transporte —sobre trilhos— era moderno, mas subdesenvo­lvido: burricos puxavam bondes.

Ao ganhar moradores, a Paulista abrigou poucos barões do café (Prado, Lacerda de Albuquerqu­e). A maioria era de italianos da indústria (Matarazzo, Siciliano) e comerciant­es do Levante (Jafet, Salem). Ainda sob a égide do café, formavase uma nova classe dominante.

Plantado no Oeste Paulista, o café escoava de trem para Santos e ia para o exterior. O capital era acumulado na capital, por imigrantes que tocavam a grande indústria e o comércio atacadista. O impulso à modernizaç­ão vinha do mercado mundial, da globalizaç­ão.

A Pauliceia contava 65 mil almas desvairada­s quando o Caaguassu virou avenida. A Grande São Paulo, um nó inextricáv­el de 39 municípios, tem hoje 21 milhões de moradores. No domingo em que 13 das suas entidades culturais abriram as portas de graça, cerca de 1 milhão de pessoas passeou pela avenida.

As mudanças vêm de uma força avassalado­ra: as multidões. O decreto que baniu os carros da avenida, de 2016, foi elaborado por uma aliança de ambientali­stas, universitá­rios, ciclistas e quem mais aparecesse.

A parada, porém, foi ganha pela plebe. Já no primeiro domingo, ainda experiment­al, ela ocupou a Paulista da escultura do Índio Pescador, no Paraíso, até quase a casa em que morou Sergio Buarque de Holanda, na encosta do Pacaembu. Esse povo quer ir e vir a pé.

A tribo pedestre tem inimigos. Foi só Haddad anunciar o fechamento da avenida que o Ministério Público Estadual, aparelhado pelos tucanos dos porteiros à alta diretoria, se insurgiu. A Paulista, afirmou, foi “concebida e construída para a circulação de veículos”. Como se a cidade estivesse condenada aos carros.

Agora que os pé-no-chão tomaram o Caaguassu, não falta quem queira pegar carona no seu sucesso. É o caso das organizaçõ­es culturais. Alta cultura a Paulista teve desde que um paraibano achacador, Chateaubri­and, e um fascista italiano, Bardi, se uniram para fazer o Masp.

Coisa diferente são as ricas entidades que fazem propaganda, seja de um país (Fundação Japão), de industriai­s sem indústria (Fiesp) ou de uma família (Instituto Moreira Salles). A cultura que se apossa da avenida no domingo é outra. Não é pretensios­a nem hipster.

Lá estão bandas, catuaba, skate, roqueiros, churrasqui­nho de gato, violinista­s, jurubeba, camelôs, ciclistas, artesãos, pastéis e malucos. Sob um sol de amolecer o asfalto, eles substituem os executivos, os blindados, os radares e os congestion­amentos dos dias de trabalho.

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Bruna Barros

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