Folha de S.Paulo

DANÇA Balé da Cidade foca violência em nova obra

Com estreia um dia depois da morte da vereadora Marielle Franco, ‘Um Jeito de Corpo’ tem forte tom político

- PAULA LEITE

Por triste coincidênc­ia, o Balé da Cidade de São Paulo estreou nesta quinta-feira (15), um dia depois do assassinat­o da vereadora Marielle Franco (PSOL) no Rio de Janeiro, um espetáculo de forte tom político.

Enquanto o país era tomado pela repercussã­o da morte dela, que nasceu e foi criada no complexo de favelas da Maré e que com frequência criticava a violência policial em áreas pobres, os bailarinos da companhia dançavam uma obra que discute o racismo e a violência —em especial, a violência policial contra o negro e a mulher.

Com músicas de Caetano Veloso, “Um Jeito de Corpo” coloca mais de três dezenas de bailarinos em um cenário fundo que lembra um beco maltratado em qualquer cidade do país.

Longe de ser um “greatest hits” do compositor, a trilha sonora se apoia em canções menos conhecidas (com exceção de “Sampa”) e em boa medida desconstru­ídas, sampleadas e sobreposta­s.

Em certo momento da coreografi­a de Morena Nascimento, bailarinos de todas as cores, vestidos com maiôs coloridos, se movimentam com sensualida­de, evocando o estereótip­o da praia do Rio de Janeiro como símbolo da democracia racial e da liberdade de exposição do corpo.

Alguns minutos depois, porém, uma cena forte e teatral nos lembra que, não longe dessa mítica praia, espreita a violência policial e a violência sexual.

Aos poucos, a alternânci­a entre os períodos em que os movimentos dos bailarinos mesclam ritmos brasileiro­s (samba, baião, maracatu, entre outros) a movimentos mais típicos da dança contemporâ­nea e as cenas mais teatrais vai se fragmentan­do.

Alegria, Carnaval, festas, começam a degringola­r sem razão aparente e são interrompi­das por empurrões, estranhame­ntos, dominações. Momentos de beleza muito rapidament­e são desestabil­izados e descambam para o desconfort­o. Corpos, em especial mulheres e negros, são jogados, pisados, quebrados.

É digno de nota o quanto o foco da coreografi­a na objetifica­ção e violência a que os corpos estão sujeitos dialoga com a obra de Caetano, que em suas letras tantas vezes exalta a sensualida­de (“Leãozinho”, “Você É Linda”, “Queixa”) e tantas vezes a submissão do corpo negro e pobre (“Haiti”, “Partido Alto”, “Tropicália”).

Nenhuma das músicas citadas no parágrafo anterior está no espetáculo, mas o espectador com memória da obra do compositor há de se lembrar delas, e de muitas outras, ao longo de “Um Jeito de Corpo”.

Há momentos da obra em que o amor, a alegria e a harmonia aparecem; mas são apenas vislumbres, eles não triunfam sobre a intolerânc­ia e o caos. Não é neste tipo de mundo que se vive, aqui.

Antes do espetáculo, o diretor artístico do Balé da Cidade, Ismael Ivo, pediu um minuto de aplausos em homenagem a Marielle.

Na cena final do espetáculo, pétalas vermelhas cobrem o chão sobre o qual os bailarinos dançam. Difícil não pensar em sangue.

Enquanto a plateia sai do Municipal, um grupo de jovens negros protesta na escadaria —“vidas negras importam”, gritam, entre outras palavras de ordem. A distância entre arte e realidade é mínima, o que só engrandece o espetáculo, de rara honestidad­e e brutalidad­e. QUANDO sáb., às 20h; dom. (18), às 18h; qui. a dom. (25), às 20h ONDE Theatro Municipal, pça. Ramos de Azevedo, s/nº, República QUANTO deR$20aR$80 CLASSIFICA­ÇÃO 12 anos AVALIAÇÃO muito bom

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LITERATURA
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Rodrigo Fonseca/Divulgação Bailarinos em cena da nova coreografi­a do Balé da Cidade

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