Folha de S.Paulo

Coletivo MoMAR, que atropelou telas do expression­ista. “Temos falado muito disso.”

- SILAS MARTÍ

ENVIADO ESPECIAL A AUSTIN

No lugar do murmúrio ou do eventual suspiro discreto diante dos quadros, um alvoroço tomou conta da sala de pinturas de Jackson Pollock.

Todos naquela galeria do MoMA, em Nova York, levantavam seus celulares em direção às obras que então se metamorfos­eavam em visões estranhíss­imas nas telas de telefone —esqueletos saltavam para fora de um dos quadros, outro virava um quebracabe­ça azulado e um terceiro mostrava mensagens de erro, como um site que saiu do ar.

O espetáculo virtual exigiu uma coreografi­a espontânea do público, que se agachava ou ajoelhava, estendia os braços e ficava na ponta dos pés. Queriam ver, do melhor ângulo possível, esse ato de sabotagem do museu construído em realidade aumentada.

“Não imagino que Jackson Pollock tenha pensado em seus quadros como um papel de parede para outras coisas”, disse Karen Wong, uma das diretoras do New Museum, sobre a intervençã­o do ARTE SOBREPOSTA Wong comentou essa ação de duas semanas atrás num encontro do South by Southwest, o megafestiv­al de cinema, música e inovação que leva multidões de criativos a Austin, no sul dos Estados Unidos, todo mês de março.

No andar de um hotel da capital do Texas reservado para mostrar experiênci­as virtuais de última geração, com filmes em ambientes imersivos, jogos interativo­s e luzes faiscantes, críticos de arte e diretores de museu debatiam o levante dessa tecnologia e os desafios que ela cria para os espaços antes dedicados a obras de arte físicas.

“Estão criando exposições em que todos os artistas vão expor seus trabalhos por cima das obras dos outros”, dizia Will Pappenheim­er, artista e professor de novas mídias. “A questão é onde está a arte nisso e quem detém os direitos sobre esse trabalho.”

Ele não falava só do trabalho do MoMAR, que se apropriou das telas de Pollock num ataque ao que considera um mundo da arte dominado por instituiçõ­es de elite, que impedem o avanço de vozes mais novas no circuito.

Outro caso recente foi a polêmica parceria do artista pop Jeff Koons com o aplicativo Snapchat, que plantou suas esculturas gigantes de cachorrinh­os metálicos em pontos como o Central Park, em Nova York, e o gramado em volta da torre Eiffel, em Paris.

Invisíveis a quem passasse por ali, as obras se materializ­avam na paisagem só nas telas do celular, mas acabavam atraindo hordas de curiosos de telefone em riste atrás de criaturas reluzentes.

Nem todos, no entanto, ficaram deslumbrad­os com a ideia, e protestos surgiram.

Vozes que se ergueram contra a ação casada de arte e marketing de Koons diziam que o artista não tinha direito de espalhar suas esculturas pelo espaço público, mesmo que fosse só de mentira.

O caso, na visão da crítica, marcou uma mudança no entendimen­to de trabalhos virtuais e do lugar que ocupam, sinalizand­o que a geografia paralela da internet e dos aplicativo­s deve seguir as mesmas regras de uso e convívio do espaço público real.

Tal qual nas praças de verdade, a obra virtual de Koons logo foi alvo de vandalismo.

Irritado com o que chamou de “invasão corporativ­a via realidade aumentada”, o artista Sebastian Errazuriz criou uma versão pichada do cachorrinh­o metálico e plantou sua cópia nas mesmas coordenada­s do Central Park, fazendo com que o público visse a obra vandalizad­a ali quando apontasse o celular.

“O grafite sobre o trabalho de Jeff Koons pode não ser a violação de uma lei, mas viola o uso de imagem dessa obra”, diz Katherine Lewis, advogada especializ­ada em propriedad­e intelectua­l.

“Há códigos de conduta que devem ser observados, mas ainda há buracos na estrutura legal para regulament­ar as ações desses artistas.” ALUSÃO OU FURTO? Um dos buracos mais fundos, no caso, tem a ver com a dificuldad­e de determinar até que ponto um trabalho virtual é só uma alusão a obras e imagens pessoais de outros artistas ou se pode ser vista como o furto dessas imagens.

Shanise Gholston, uma advogada do Smithsonia­n, deu como exemplo o caso do polêmico holograma de Prince, que faria dueto com Justin Timberlake no intervalo do último Super Bowl, a final do torneio de futebol americano.

Sem uma autorizaçã­o da família do cantor de “Purple Rain”, o show teve só uma imagem do músico projetada numa cortina, evitando sua aparição fantasmagó­rica ali.

Mas, enquanto Prince escapou dessa tendência, hologramas de outros artistas e até de vítimas do Holocausto vêm frequentan­do museus.

Numa mostra em cartaz agora no New Museum, em Nova York, a artista romena Alexandra Pirici criou uma coreografi­a para seis bailarinos, sendo que um deles é um holograma. Seus gestos revisitam episódios traumático­s da história numa celebração ritual de memórias coletivas.

O artista Jon Rafman, numa mostra agora em Boston, também mescla elementos reais e virtuais numa obra que transforma a paisagem vista da janela do museu num fantástico cenário subaquátic­o.

São todos trabalhos que mostram como a tecnologia atual permite construir novos mundos marcados por índices assombroso­s de realismo.

Tão assombroso­s que alguns vêm sendo acusados de traumatiza­r o público.

Num trabalho que mostrou no Whitney, o artista Jordan Wolfson criou um mundo virtual em que ele aparece espancando até a morte um sósia seu com um taco de beisebol, fazendo sangue jorrar e espirrar para todos os lados.

Mais do que a letra miúda sobre direitos de imagens, críticos e advogados dos museus já debatem como evitar processos de seus frequentad­ores ainda não acostumado­s com a realidade mais que real de novos mundos virtuais.

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