Folha de S.Paulo

Tarde-noite há 50 anos

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RIO DE JANEIRO - Às 18 horas do dia 28 de março de 1968, eu estava me despedindo de Tom Jobim depois de horas a uma mesa do Veloso, botequim de Ipanema. Ele, rescendend­o a Los Angeles, onde passara o ano anterior às voltas com seu disco com Frank Sinatra. Eu, o jovem (20 anos) repórter de Manchete e achando natural ouvir de Tom que, na véspera, seu pai, Jorge Jobim, morto em 1935, aparecera-lhe ao pé da cama e lhe ordenara deixar de ser preguiçoso. Se Tom Jobim me dizia que falava com os mortos, quem era eu para duvidar?

Naquele momento, sem que soubéssemo­s, outra pessoa estava morrendo: Edson Luís de Lima Souto, 18 anos, com uma bala no peito por um PM no Calabouço, restaurant­e popular para meninos como ele, recémchega­dos ao Rio para estudar. Edson viera do Pará e era simples figurante num protesto em curso aquela tarde-noite no restaurant­e. O ato foi reprimido com ferocidade e promoveu o encontro fatal —entre ele e a bala.

Antes que a PM sumisse com o corpo, seus colegas o levaram nos ombros por quase um quilômetro pelas ruas do Centro até a Assembleia Legislativ­a, na Cinelândia, onde o deitaram no saguão. Enquanto isso, ainda sem saber de nada, eu estava num táxi a caminho do apartament­o de meus pais, no Flamengo. Ao chegar, a TV ligada no Repórter Esso me botou a par. Saí correndo. Do Flamengo à Cinelândia era um pulo, mas a cidade parara, congestion­ada. O jeito era ir a pé —o que, de repente, todo mundo que eu conhecia parecia estar fazendo.

Pelas horas seguintes, o prédio iluminado da Assembleia foi um facho de esperança na noite do Rio. Era como se, ali, em torno de Edson, inerme, se encenasse o velório da ditadura.

Ilusão. A ditadura sobreviver­ia a muitos outros Edsons e um dia cairia, só que de podre. Mas aquele Edson foi há 50 anos e parece ter sido ontem. ANTONIO DELFIM NETTO ideias.consult@uol.com.br

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