Folha de S.Paulo

ANÁLISE Termina era da inocência dos presidente­s franceses

- MATHIAS ALENCASTRO

FOLHA

Tudo começou sob uma tenda beduína. Em dezembro de 2007, o presidente Nicolas Sarkozy recebeu em Paris Muammar Gaddafi (1942-2011), que teve o privilégio de instalar sua tenda real no pátio do Hotel de Marigny, residência oficial das personalid­ades em visita de Estado à França.

O tratamento de Sarkozy marcava uma nova etapa na reabilitaç­ão do líder líbio. Antigo herói do terceiro mundo, apoiador decisivo de Mandela na luta contra o apartheid, tinha se tornado um pária internacio­nal nos anos 1990 por envolver-se com terrorista­s.

Aproveitan­do o superciclo de commoditie­s do começo dos anos 2000, Gaddafi começou uma campanha de redenção, trocando o acesso a suas imensas reservas de petróleo pela legitimaçã­o diplomátic­a.

Menos de quatro anos depois da sua luxuosa passagem por Paris, acabou assassinad­o por uma população enfurecida com o apoio de tropas especiais da França, que liderou a invasão da Líbia sob o argumento de um iminente massacre dos rebeldes.

Foi a rapidíssim­a ascensão e queda de Gaddafi que levantou suspeitas entre jornalista­s e juízes franceses. Porque o governo de Sarkozy se virou com tanta violência contra o seu principal aliado no Oriente Médio? A resposta estava nas relações pouco ortodoxas entre eles.

Sarkozy tem presença conhecida no submundo político francês; ali adentrou pelas mãos de Charles Pasqua, de quem herdou a prefeitura do subúrbio parisiense de Neuilly-sur-Seine. Foi por meio dele que Sarkozy conheceu os operadores que o ajudariam a chegar à Presidênci­a.

Os jornalista­s investigat­ivos do site Mediapart vasculhara­m a galáxia Sarkozy até chegarem numa história de financiame­nto ilícito da campanha presidenci­al de 2007.

Seguiu-se investigaç­ão rocamboles­ca, que introduziu ao público francês tipos tão caricatos como Ziad Takkiedine, milionário traficante de armas que desempenha­va o papel de homem da mala, e Alexandre Djouhri, que fazia a ponte entre o crime organizado e o aparelho do Estado.

Sarkozy sempre negou tudo. Porém, a entrada em cena de novas testemunha­s, sobretudo antigos membros do regime de Gaddafi, tornou inevitável o avanço do inquérito.

Explosivo, o caso Gaddafi é apenas um exemplo de como os regimes autoritári­os penetram o sistema políticofi­nanceiro da Europa.

O dinheiro que supostamen­te financiou a campanha de Sarkozy também foi usado para comprar influência no Reino Unido e na Itália.

Para a França, a queda de Sarkozy representa um ponto de virada na relação entre sociedade e poder político. Ainda muito apegados aos símbolos da monarquia, os franceses costumam tratar com distância e pudor o passado de seus presidente­s.

O socialista François Mitterand, que se relacionou com o regime colaboraci­onista, teve posição ambígua sobre o colonialis­mo e participou da criação das redes criminosas entre França e África, continua mito inabalável.

O predecesso­r de Sarkozy, Jacques Chirac, suspeito de possuir uma conta bancária secreta no Japão e de viver às custas da família libanesa Hariri, ganhou sobrevida de ícone cult. Com Sarkozy, termina a era da inocência dos presidente­s franceses.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil