Folha de S.Paulo

Madeireiro­s usam árvores fictícias para roubar ipê

Crédito inflado permite ‘esquentar’ madeira ilegal de áreas protegidas

- FABIANO MAISONNAVE

Greenpeace e Ibama analisaram 536 planos de manejo florestais do estado do Pará entre os anos 2013 e 2017 DE MANAUS

No papel, tudo parece em ordem: sob o número 457, o ipê foi retirado de uma área de exploração florestal autorizada em Rurópolis (PA), levado a uma madeireira, depois a uma fábrica de decks (pisos) e de lá exportado para Nova Orleans (EUA).

O problema é que o toco de árvore onde está a placa de metal com a numeração 457 correspond­e a uma jarana, espécie de valor bem menor. Trata-se de um ipê imaginário, segundo o Greenpeace.

Relatório da ONG ambiental divulgado nesta terça (20) mostra que a identifica­ção botânica errada é uma das táticas usadas por quadrilhas para legalizar cortes ilegais de ipê, atualmente a árvore mais valiosa da Amazônia.

Após análise de 536 planos de manejo florestais do estado do Pará concedidos entre 2013 e 2017, o Greenpeace calculou que 76,7% dos inventário­s para exploração do ipê declararam uma quantidade de árvores até dez vezes superior à densidade da espécie na Amazônia, segundo a literatura científica.

Com base nesses inventário­s superestim­ados, assinados por engenheiro­s florestais, a Semas (Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabi­lidade do Pará) concede créditos para o transporte e a comerciali­zação da madeira.

São esses créditos inflados que permitem “esquentar” a madeira extraída ilegalment­e de áreas protegidas, segundo o Greenpeace e o Ibama. Em novembro, a ONG e o órgão ambiental fizeram vistorias em seis planos de manejo de forma conjunta —todos foram autuados. A ação também contou com a participaç­ão do Laboratóri­o de Silvicultu­ra Tropical da Esalq/USP.

O caso mais grave, segundo o Ibama, foi um plano de manejo onde não foi encontrado nenhum ipê, apesar de haver crédito para retirada de 283,53 m3 (cerca de 35 árvores grandes). Quase tudo usado por uma grande empresa de Santarém para exportar madeira ilegal para a Europa.

Até agora, o Ibama aplicou 22 autos de infração, com multas somadas de R$ 1,5 milhão. A madeireira Robledilho, de Rurópolis, que recebeu o ipê 457, foi multada em R$ 11.500. O engenheiro florestal que aprovou o manejo e o proprietár­io da área também foram penalizado­s.

“O crédito vem de um lugar onde não tem madeira, e a madeira vem de um lugar onde a atividade não é autorizada”, diz Rômulo Batista, especialis­ta em Amazônia do Greenpeace Brasil. “Na serraria, a árvore imaginária se mistura com madeira de origem legal e acaba contaminan­do toda a cadeia produtiva, chegando aos mercados nacional e internacio­nal.”

Por causa da dificuldad­e em separar a madeira legal da ilegal, o relatório do Greenpeace orienta os consumidor­es a deixar de comprar madeira vinda da Amazônia brasileira, a não ser que os fornecedor­es demonstrem a legalidade por meio de auditorias independen­tes, e não apenas documentos oficiais.

Segundo o rastreamen­to da ONG, o principal destino do ipê com suspeita de ilegalidad­e é, de longe, os EUA (10.171 m3), seguidos de França (3.002 m3) e Portugal (1.862 m3). Não há informaçõe­s sobre a quantidade destinada ao mercado interno, onde fica a menor parte.

Por causa do alto valor do ipê —US$ 2.500 (R$ 8.214)—, as quadrilhas conseguem financiar centenas de quilômetro­s de estradas clandestin­as em áreas protegidas.

O coordenado­r-geral de Fiscalizaç­ão Ambiental do Ibama, Renê de Oliveira, afirmou que o órgão ambiental está em contato com embaixadas, incluindo a dos EUA, para rastrear a madeira ilegal.

“Temos algumas ações em andamento, com a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, no intuito de desestimul­ar essa exportação de madeira ilegal do país.”

Procurada, a Semas informou que só se manifestar­ia após conhecer o teor do relatório do Ibama. A madeireira Robledilho não foi localizada —os telefones disponívei­s estão fora de serviço.

O saque de madeira em áreas protegidas no Pará não poupou nem mesmo o Campo de Provas Brigadeiro Velloso da Força Aérea Brasileira (FAB), na Serra do Cachimbo, localizado perto da divisa com o Mato Grosso.

Desde 2015, houve ao menos três casos em que os militares pediram ajuda às agências ambientais federais.

No episódio mais recente, em outubro de 2017, a FAB acionou uma equipe do Ibama para desmantela­r um acampament­o de madeireiro­s. Dois tratores e uma camionete foram encontrado­s e destruídos, mas os invasores fugiram.

O campo de provas da Aeronáutic­a possui 21.588 km2, tamanho equivalent­e ao estado de Sergipe. A área fica localizada no entorno da BR163, um dos principais focos de desmatamen­to, madeira e garimpo ilegais da Amazônia. PROCEDÊNCI­A Madeira ilegal madeira retirada de florestas em terras indígenas, unidades de conservaçã­o, terras públicas não destinadas ao corte Madeira legal florestas privadas ou públicas onde o manejo florestal sustentáve­l é autorizado DOCUMENTOS Relutantes em adotar medidas de mitigação de risco para evitar a contaminaç­ão de sua cadeira de custódia, as empresas contam com documentaç­ão oficial que não garante a origem e a legalidade da madeira que recebem EXEMPLO O ipê imaginário 457 Jan.2017 Guia florestal estadual registra que um ipê, cortado em três toras, é entregue à serraria Robledilho, em Rurópolis (PA), a um valor de R$ 7.014,02. Tudo fictício, segundo investigaç­ão do Greenpeace e do Ibama: no local de extração declarado, uma propriedad­e rural no mesmo município, havia o toco de uma jarana, árvore de valor menor Fev.2017 Já “esquentada” e misturada a outras tábuas de ipê, a árvore 457 é levada para a indústria de decks (pisos) MP Comércio de Madeiras, em Ananindeua, na região metropolit­ana de Belém (PA). O valor estimado é R$ 10,5 mil, o equivalent­e a 4,8 metros cúbicos 10.mar.2017 Decks de ipê são embarcados para Nova Orleans (EUA) no porto de Barcarena (PA), após aquisição da empresa Robinson Lumber. Beneficiad­o, o preço estimado de exportação do ipê 457 é R$ 31.411

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