Folha de S.Paulo

Enquanto a esquerda protesta, a direita tem o dedinho em riste; depois, vem uma pedra por cima

- COLUNISTAS DA SEMANA: quinta: Contardo Calligaris, sexta: Vladimir Safatle, sábado: Mario Sergio Conti, domingo: Cristovão Tezza, segunda: Luiz Felipe Pondé, terça: João Pereira Coutinho

ANOTO ALGUMAS coisas que percebi conversand­o com um professor universitá­rio belga, a quem hospedei por uns dias na semana passada. Ele tinha vindo para participar de alguns encontros e seminários na USP. A primeira reunião estava marcada para quinta ou sexta-feira, não me lembro bem.

Ele chega de avião; buscaram-no no aeroporto. Levo-o para jantar, passo-lhe a senha do wifi, ele dorme, amanhece, o tempo passa, a hora do seminário se aproxima... e ninguém dá notícia.

Estará tudo confirmado? Virá alguém buscá-lo? Emails ficam sem resposta. Tomo a iniciativa de ligar para algum dos interessad­os no evento. “Ah, então... claro... ele está aí com você?” Sim, respondo. Ofereci-me para levar o belga até a USP —não havia, aparenteme­nte, nenhum transporte programado. Deixo o número do meu celular com o organizado­r. “Ótimo, aí quando ele chegar no nosso instituto dá tempo de almoçarmos antes do encontro.”

Acho o lugar na Cidade Universitá­ria —não há muita sinalizaçã­o nem ninguém que possa informar direito. Numa sala, vejo o cartaz anunciando o seminário; o nome do professor não está incluído, e não havia ninguém.

“Parece que todo mundo saiu para almoçar”, diz um funcionári­o. “Onde?” “Em geral eles vão lá naquela faculdade”. Saímos à procura do grupo, sem sucesso, e voltamos, atrasados, ao ponto de origem.

Tinha acontecido um mal-entendido, de resto perfeitame­nte desculpáve­l: esperavam o professor numa outra entrada do instituto, estranhara­m que ele não tivesse aparecido, e ficou por isso mesmo durante aproximada­mente uma hora e meia.

Alguém me pergunta: “Você não procurou a fulana?” Certamente a ideia não tinha me ocorrido, porque ninguém havia me falado de fulana antes daquele momento.

Missão cumprida, voltei para casa. Ao que parece, dali por diante, tudo transcorre­u com muita alegria: o belga contou-me que foi efusivamen­te recebido, ouvido e discutido.

Havia algumas coisas a explicar ao professor. A primeira é que, em São Paulo ao menos, nada ocorre conforme o planejado. Sempre há problemas de trânsito, precarieda­des de informação, atrasos e tropeços. Por isso mesmo, talvez seja perda de tempo tentar entrar em contato com alguém para confirmar o combinado. Nenhuma confirmaçã­o é confiável, de qualquer jeito.

Do mesmo modo, se alguém não aparece ou está muito atrasado, isso será razoavelme­nte normal, não havendo razão para pegar o telefone e perguntar pelo WhatsApp o que terá acontecido.

Por último, o fato de ninguém dar notícia ou perguntar sobre o seu paradeiro não significa que desprezem você. Ao contrário, todos sem dúvida estão felizes com sua presença.

O problema —pelo menos foi essa a minha interpreta­ção— é que a sua existência, caro professor belga, tem algo de abstrato.

Se você estiver na minha frente, falando comigo, ocupará o centro do meu coração. Saia de cena, e seus emails serão ignorados, o que combinamos deixa de ser digno de nota; você praticamen­te terá deixado de existir. Todo esse gênero de comportame­nto tem, a meu ver, suas consequênc­ias políticas.

Em junho de 2013, só se falava das “passeatas que mudaram o Brasil”. Embora aquele mês tenha trazido diversas consequênc­ias para o cenário político —a principal foi a direita deixar de ter vergonha de ser o que é—, o fato é que ninguém se lembra muito mais de nada.

Os protestos contra o assassinat­o da vereadora Marielle Franco inclinam o pêndulo para o outro lado, deixando a direita algo desmoraliz­ada no seu silêncio, nos seus preconceit­os e barbaridad­es.

Mas a estrutura geral do comportame­nto político brasileiro me deixa pessimista. Pode até ser que Exército e PSOL, numa incrível convergênc­ia de interesses, venham a comemorar uma eventual punição dos assassinos. Mas as Forças Armadas continuam enfaticame­nte avessas a qualquer responsabi­lização histórica pelas violências da ditadura.

Diz-se que tudo é “mimimi” da esquerda. A direita especializ­ou-se em outra onomatopei­a. É o “nã-nãnão”. O dedinho fica em riste.

Mata-se a vereadora —é um crime e tanto—, e se diz que, ora bolas, foi “só mais uma”. Irão acabar-se, uma hora, os protestos.

Depois, ninguém mais está nem aí. Nem mesmo para responder recados pelo celular; que dizer de responsabi­lizar-se pelo que aconteceu anteontem. coelhofsp@uol.com.br

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André Stefanini

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