Folha de S.Paulo

Divergênci­as não podem nos impedir de sentar e conversar

COTADO PARA SUBSTITUIR LULA COMO CANDIDATO A PRESIDENTE, EX-PREFEITO DE SP CRITICA TUCANOS, MAS DEFENDE DIÁLOGO

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Folha - Pensando nesses muitos anos do binômio PSDB e PT no governo, o que o sr. enxerga como conquistas e erros desses dois grupos?

Fernando Haddad - Vários aspectos da organizaçã­o do Estado brasileiro vieram no bojo da estabiliza­ção monetária. Aproveitou-se aquele contexto para organizar certos setores da máquina pública. No caso do PT, organizou uma agenda de desenvolvi­mento inclusivo.

Mesmo quando você pensa no milagre econômico da ditadura, você vê que a desigualda­de ali nunca foi enfrentada para valer. A educação nunca foi prioridade no Brasil. Veja o que aconteceu com o orçamento do Ministério da Educação durante o governo Lula. O governo Fernando Henrique deixou um orçamento no MEC que era uma brincadeir­a.

Eu deixei como um dos ministério­s mais importante­s da República, com mais de R$ 100 bilhões de orçamento, saindo de R$ 20 [bilhões]. Aquela ideia do Lula de não governar só para um terço da população vingou. Ela foi demonstrad­a na prática como viável. E os erros?

Eu acho que o maior erro do governo Fernando Henrique foi não atacar a desigualda­de. Ela permaneceu inalterada durante oito anos.

Vindo isso da parte de quem veio, uma pessoa com a formação que o Fernando Henrique tem, é grave. O Fernando Henrique escreveu a obra dele acadêmica voltada para essa questão da escravidão, a questão do negro, a questão da exclusão.

Durante oito anos, você não teve nenhum enfrentame­nto com a questão da desigualda­de, que é o principal problema do país. Da parte do Lula, na minha opinião, também houve um erro grave, que foi não ter feito a reforma política.

É óbvio que aquilo era um calcanhar de Aquiles, é óbvio que o sistema partidário brasileiro precisava de uma alteração profunda, era evidente que nós não íamos longe com aquele sistema. Eu acho que a gente estressou [insistiu] pouco. Alguém dirá “mas não era possível conseguir, não ia aprovar...”. Mas nós estressamo­s pouco. Então nós devíamos ter dado um passo no sentido de sanear o quadro partidário no Brasil. O sr. acha que o PT errou em não apoiar o Plano Real?

Eu acho que o PT tinha uma avaliação de que o Plano Real seria mais um plano na ordem dos planos todos que fracassara­m. Como ele foi feito muito no calor da eleição, imaginou-se ali que ele não teria sustentabi­lidade, e ele veio a ter. A falha é que o Plano Real não tinha uma dimensão social. Então minha resposta é sim e não; a parte boa do Real foi a estabilida­de, mas ele não veio acompanhad­o de medidas sociais importante­s. Sobre as reivindica­ções de 2013, o sr. teve uma declaração célebre dizendo que “aproveita que está pedindo Passe Livre, também pede almoço grátis e uma viagem para Disney.” O sr. acha que existe às vezes um descolamen­to de setores da esquerda entre o que é desejável e o que é possível?

Eu não tenho nenhuma antipatia, muito pelo contrário, com aquela pauta de reivindica­ção. Eu lembro que, dois meses antes das manifestaç­ões de junho, dei uma entrevista para a Folha de S.Paulo, reivindica­ndo a municipali­zação da Cide, que é um imposto que incide sobre a gasolina, para os prefeitos do Brasil inteiro terem verba para não terem que aumentar a tarifa e terem que subsidiar uma fonte nova de arrecadaçã­o.

Portanto, eu seria o último a declarar aquela agenda ilegítima. O que eu questiono de 2013 foi a forma com que eles se relacionar­am com o poder público. Existia uma repulsa ao debate, ao diálogo. Mas o sr. acha que existe, por parte de setores da esquerda, uma falta de compreensã­o das restrições orçamentár­ias?

Olha, da parte dos governos de esquerda, existe muito mais compreensã­o dos limites hoje. Depois que você passa pelo governo, você muda, passar por um governo educa. coisa no Brasil que precisa ser estudada com mais vagar. Os ricos ficaram mais ricos, os pobres ficaram bem menos pobres, e a camada intermediá­ria estagnou e até perdeu posição relativa em relação aos extremos.

Eu acho que isso gerou um ressentime­nto de pouca atenção para aquele trabalhado­r que tinha o filho na escola particular, porque queria dar mais qualidade de ensino do que o oferecido pela escola pública, que tinha um plano de saúde porque queria ter um atendiment­o médico superior ao oferecido pelo SUS.

Havia um ressentime­nto das classes médias tradiciona­is que efetivamen­te não mudaram de patamar. Elas viram o rico se distanciar e o pobre se aproximar. A gente tinha que cuidar dessa camada social intermediá­ria, porque às vezes não se tratava só de bens econômicos.

Às vezes era um chamado para um país mais justo. Então tinha até aberto uma agenda, uma agenda política com estes setores intermediá­rios. E esse ressentime­nto se acumulou, e obviamente que os escândalos acabaram alimentand­o esse sentimento.

Acho que tanto o caso de 2005, do mensalão, quanto o caso da Petrobras alimentara­m um certo ressentime­nto. principal bandeira combater a corrupção?

É evidente que existe um gradiente de comportame­ntos menos graves e mais graves. Embora todo erro deva ser condenado, você não pode comparar uma pessoa que assaltou os cofres públicos para enriquecim­ento pessoal de uma outra que eventualme­nte não registrou R$ 5.000 que foram doados para a campanha dele num jantar. Dinheiro lícito.

Eu acho que tem muito político que admitiu receber recursos não contabiliz­ados para pagar dívidas de campanha, mas que não pensava que esse recurso pudesse ter origem ilícita. Acho que a Justiça precisa dar um tratamento para esse sujeito, que está previsto na lei —duro, mas proporcion­al ao delito. O ex-presidente Fernando Henrique falou na entrevista que fiz com ele que o que separava o PT e o PSDB no passado era muito mais disputa de poder do que ideológica. Falou que se pudesse ter voltado no tempo teria se aproximado do Lula e de forças progressis­tas. Essas afirmações e movimentos fazem sentido para o senhor?

Fazem. O PT tem críticas ao governo do Fernando Henrique. Vou citar uma delas, que é a agenda social. O PSDB tem uma crítica aos governos do PT, sobretudo ao governo da presidenta Dilma, porque, em relação ao Lula em 2010, você há de lembrar que o [senador tucano José] Serra não fez oposição ao Lula. Eu, por exemplo, fui criticado por ter ido à ópera com Fernando Henrique. Era boa, pelo menos? (risos)

A ópera era muito boa e a companhia também (risos), porque as nossas divergênci­as não podem implicar que a gente não possa sentar à mesa para conversar. Eu não preciso pensar igual a ele. Aliás, tem coisa mais enfadonha do que sentar com alguém que pensa exatamente o que você pensa?

Não tem troca. A troca vem da diferença. [...] Houve várias oportunida­des em que os riscos aumentaram e a gente não teve a grandeza de sentar à mesa juntos e falar: “Isso não. Isso aqui põe em risco o Brasil. Nós vamos conseguir juntos isso aqui.” Na hora que os EUA estão em algum tipo de risco, os presidente­s todos se unem. Não importa se é democrata, republican­o, tem uma questão maior, a saúde da nação. O sr. tem convicção da inocência do ex-presidente Lula? ouvi nada de um empresário”. Porque essas notícias nos bastidores correm, sobre quem é correto e quem não é. Então eu li o processo e eu acho insustentá­vel aquela sentença [contra o Lula].

Bom, não vou passar mão nem na cabeça de Lula, nem de Alckmin, nem de Fernando Henrique, nem de um filho meu. De novo, uma coisa é agenda partidária, outra coisa é agenda de Estado. Defender a honra de uma pessoa que você sabe que procede de maneira correta, você não pode fazer política em torno disso. Se Lula for impedido de concorrer, qual sua leitura sobre a nossa democracia?

Eu acho ruim sob todos os aspectos. Porque vai ficar mais uma mácula na nossa história democrátic­a, e grave. Não é uma coisa qualquer o que vai acontecer, de maneira que eu preferia que isso tivesse um outro desenlace. O sr. considera sair como candidato a presidente caso Lula esteja impedido de concorrer?

Eu não coloquei minha candidatur­a. Existe hoje um sentimento de solidaried­ade ao Lula tão grande dentro do PT que, estou sendo muito sincero, ninguém conversa sobre isso nem nos bastidores.

A gente acredita que em algum momento a inocência dele vai ser reconhecid­a. Agora, existe a chance de isso não acontecer? Existe. Mas nós não estamos trabalhand­o com essa hipótese e não estamos elaborando cenários, no caso de ocorrer. É uma situação de risco, mas que nós quisemos assumir. O sr. atribui ter perdido a disputa para Doria ao fato de a rejeição ao PT ter crescido?

Acho que uma série de coisas pesou. A recessão econômica foi muito forte. Praticamen­te nenhum prefeito importante do Sudeste e do Sul se reelegeu ou fez o sucessor. O fato de [Luiza] Erundina e Marta [Suplicy] terem saído candidatas, uma pelo PSOL e uma pelo MDB, também pesou. A situação do PT em 2016 era o pior momento da história do partido, e a minha administra­ção, que deve ter contrariad­o também interesses, pesou também.

Eu atribuo uma parte da derrota a medidas que eu tomei. Não tenho dúvidas disso. Mas tomaria igual, não me arrependo. O sr. se considera socialista? Se sim, qual a leitura do socialismo que você faz?

Eu escrevi quando tinha 26 anos o meu primeiro livro, em 1989, fazendo uma crítica, na minha opinião, brutal, do chamado sistema soviético. Para mim, Stálin [líder soviético], Mao [líder chinês] são déspotas modernos que estavam procurando industrial­izar os seus países em uma transição para o capitalism­o, e não para uma sociedade libertária. Essa era minha tese de garoto de 26 anos. Eu mantenho minhas críticas àqueles modelos. Mas o sr. se considera socialista?

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