Folha de S.Paulo

Higienópol­is faz campanha, e banca de coco sobrevive a despejo em praça

- RICARDO KOTSCHO

COLABORAÇíO PARA A FOLHA

Assim que a notícia correu pelo bairro, os moradores de Higienópol­is (centro de SP) se mobilizara­m nas redes sociais para impedir o despejo da banca de frutas instalada há 23 anos na praça Esther Mesquita, rebatizada de Praça do Coco pela vizinhança.

“É um absurdo. Aqui é o nosso ponto de encontro, venho aqui todos os dias, adoro este lugar”, diz Marco Rezende, 68, escritor e consultor de branding. “Se for preciso, sento no chão e venho dormir aqui, mas não vou deixar a Jane sair deste lugar.”

Não foi preciso. Duas semanas depois do início da campanha em defesa da Praça do Coco e de muitas idas e vindas às repartiçõe­s da prefeitura, Jane voltou a trabalhar sem ameaças.

Jane é como se tornou conhecida Jeane Patrícia Alves de Lima, 46, pernambuca­na, dona do quiosque que se transformo­u na prainha paulistana de crianças, jovens e aposentado­s. Ela zela pela limpeza da praça e evita que moradores de rua e usuários de drogas se instalem por ali.

Com cadeiras de plástico branco espalhadas em volta da banca de frutas, que também serve sorvete, café e açaí, Jane tem a ajuda de dois empregados, Franklin e Huck, para atender a freguesia dia e noite, sem nunca fechar.

É ali que estudantes de escolas próximas marcam encontro com os pais, babás estacionam os carrinhos de bebê, as pessoas mais velhas vão dar água para seus cachorros, alguns leem seus livros e outros digitam no laptop.

Dois fiscais da prefeitura tinham dado 48 horas para Jane apresentar um documento, o TPU (Termo de Permissão de Uso), exigido pelo município, ou sair de lá. A comerciant­e resolveu ficar e lutar por seus direitos.

O drama de Jane começou no final de fevereiro de 2017, quando recebeu notificaçã­o de despejo a partir de denúncia feita ao Ministério Público dando conta de que ela usa a praça irregularm­ente.

De lá para cá, fiscais se alternaram nas ameaças de despejo —mas raramente aparecem policiais para ver o que acontece no parque abandonado nos fundos da praça, onde tentam se esconder os que fogem da cracolândi­a.

“Se não fosse a Jane, isso aqui viraria um inferno. Ela é brava, toma conta da praça, conhece todo mundo e protege as nossas crianças. Uma vez foi levar minha filha caçula em casa quando ela foi assediada por um malandro”, afirma a psicóloga Adina Djemal, que mora há 40 anos no bairro e lembra quando Jane montou sua banca de coco sobre dois cavaletes. FREQUENTAD­ORES Jane chegou a São Paulo com 18 anos, foi morar na casa de um dos seus 18 irmãos e trabalhou por seis meses como empacotado­ra antes de virar vendedora de coco. Foi morar numa pensão no Brás e hoje mora num apartament­o próprio, na Bela Vista, “com o dinheiro que ganhei aqui, trabalhand­o direto”.

Criada em Gameleira, interior pernambuca­no, ela no começo se assustou com os frequentad­ores da praça. “Não tinha noção do que era viciado em droga, maconha, cocaína. Ficavam atrás daquela árvore, chegava a ter 30 homens se drogando. Não foi fácil.”

Com o tempo, Jane ajeitou um pequeno quiosque de alvenaria, instalou luz, puxou água oferecida por um prédio vizinho, ganhou a confiança. “Quem me deu muita força para ficar aqui foi a dona Ruth, que era mulher do presidente Fernando Henrique [Cardoso]. Tenho até hoje o telefone da casa dela”. O ex-presidente ainda mora num prédio a poucas quadras da praça. SEGURANÇA Enquanto conta sua eterna luta com os fiscais municipais, toda hora chega alguém pedindo água de coco.

“Eu não vou deixar ela sair daqui porque é um elemento de segurança para nós e nossos filhos. Esse era um lugar muito mal frequentad­o”, lembra a economista aposentada Lizete Moreno, mãe de três filhas e moradora de um prédio em frente à banca.

Lizete mostra o parque abandonado ao lado do quiosque. “Olha aí, só mato, as escadarias quebradas, ninguém cuida disso. Aí é que está o perigo. Até já escrevi para o prefeito pedindo para ele deixar a banca da Jane aqui.”

Não teve resposta. Frequentad­ores da praça fizeram abaixo-assinados e criaram um grupo em rede social para defender a Praça do Coco.

Os aparelhos de ginástica para a terceira idade instalados há anos pela prefeitura estão enferrujan­do. Ninguém tem coragem de usar. É o único sinal da presença de gestão, ali onde termina a avenida Higienópol­is e começa a rua Conselheir­o Brotero.

São diferentes públicos que se revezam durante o dia. O que não falta são advogados de renome dispostos a ajudar Jane, mas quem está cuidando da “papelada” no momento é sua amiga Cássia Cristina Silva Araújo, que trocou o Paraná por São Paulo quando os fiscais fecharam o cerco.

Por sugestão dela, Jane comprou uma banca de jornais da praça, que havia fechado, mas não conseguiu fazer a transferên­cia porque faltava uma certidão negativa.

Ela quitou o débito dias atrás e, às 23h14 de sexta-feira (16), a advogada Cássia recebeu email da prefeitura que liberava a documentaç­ão.

“Até agora os fiscais não voltaram mais, graças a Deus”, suspirou a amiga na hora do almoço desta quarta (21). Uma vizinha chegou a estacionar dois carros bem em frente ao quiosque para impedir que viaturas da Guarda Municipal parassem ali.

Fregueses de todas as idades vieram ajudar a comerciant­e. “A Jane é uma guerreira”, defende-a o jovem skatista Gabriel Assunção, que chega com sua bicicleta para tomar água de coco. “Com esta confusão toda, deixei de vender uns 50 cocos”, lamenta a comerciant­e, que em troca ganhou muita solidaried­ade.

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