Folha de S.Paulo

PRONTO PARA O PERDÃO

Atingido por tiro de cabo do Exército em ocupação da Maré em 2015, Vitor, 32, ficou paraplégic­o, mas diz que militar só atirou porque alguém mandou e culpa governo

- LUIZA FRANCO INTERVENÇíO

Sentado na cadeira de rodas, Vitor Santiago Borges, 32, olha para a câmera fotográfic­a da Folha e posa. “Tipo assim, sensualiza­ndo”, diz, e bota a mão na cicatriz deixada em sua perna direita por um bala de fuzil disparada por um cabo do Exército, em fevereiro de 2015.

A bala atravessou essa perna e atingiu a esquerda, que teve que ser amputada. Outra bala atingiu sua coluna e o deixou paraplégic­o.

O bom humor de Vitor chama a atenção, mas não é a regra, conta sua mãe, Irone Santiago, 53. Ela, que era costureira, assumiu a linha de frente de defesa do filho.

Hoje, Irone trabalha para uma ONG na qual informa moradores do Complexo da Maré, conjunto de favelas na zona norte do Rio, sobre seus direitos, para que denunciem abusos de autoridade­s. No Whatsapp, seu nome é “Vitória Na Guerra”.

O carro em que Vitor estava naquele dia foi fuzilado por um cabo do Exército durante o período de ocupação da Maré pelas Forças Armadas. As tropas permanecer­am na comunidade de abril de 2014 a junho de 2015.

Com a intervençã­o federal na segurança do Rio desde fevereiro, esse e outros equívocos dos militares voltam à memória dos moradores.

Foi na Maré que cresceu a vereadora Marielle Franco (PSOL), assassinad­a na quarta (14), no bairro do Estácio. ESPERA Vitor está há três anos em compasso de espera. “Estou cansado de ficar estagnado. Sinto falta até de levantar cedo para trabalhar. Quero dar um novo pontapé na minha vida, sair da favela, tirar minha família daqui. Quem sabe, administra­r um negócio.”

No início, não conseguia fazer quase nada. “Se hoje está ruim, ontem foi pior. Ainda tenho uma úlcera. De três em três dias troco curativo. Uso fralda geriátrica, mas controlo melhor. Estou me descobrind­o como cadeirante”, diz ele, dentro de casa, onde cresceu, na Maré.

“O que aconteceu não tirou minha esperança, mas, de resto, me tirou tudo. Se estiver numa discussão no meu relacionam­ento, não posso virar as costas e ir embora, tenho que ficar ouvindo”, brinca.

Volta a falar sério. “Não posso sair de casa sozinho. E se tem tiroteio e estou na cadeira? É por isso que saio pouco.” O Complexo da Maré é horizontal, não fica em morros, como muitas favelas do Rio, mas tem ruas esburacada­s, sem rampa, algumas sem calçamento.

Alvo de operações policiais frequentes e palco de disputas territoria­is por grupos criminosos, a Maré é hoje uma das favelas mais violentas da capital fluminense.

Além de ainda estar aprendendo a ser cadeirante, Vitor aguarda a sentença sobre uma ação indenizató­ria.

Sua defesa pede à União casa e carro adaptados, compensaçã­o por danos morais e estéticos e a continuida­de de uma pensão e de fornecimen­to de materiais médicos, que ele já recebe. Ele também recebe uma aposentado­ria por invalidez. Foi procurado pelo governo do estado para um acordo, mas recusou.

Em paralelo corre um processo criminal. O Ministério Público Militar denunciou o cabo por lesão corporal gravíssima contra Vitor e lesão corporal leve contra seus amigos, mas sugere um atenuante da pena devido às condições perigosas em que estavam as tropas. Denunciou o motorista, amigo de Vitor, por desobediên­cia (pena de até seis meses de detenção). O processo contra os dois corre na Justiça Militar. CHOQUE DE VERSÕES Era noite de quinta, às vésperas do Carnaval. Vitor e quatro amigos foram assistir a um jogo do Flamengo pela TV em uma favela vizinha e tomar cerveja em outro bairro.

“Na volta, entramos no complexo como sempre se faz em comunidade: luz acesa, vidro abaixado, todo mundo sem cinto. Em 29 anos, nunca tinha dado motivo para [suspeita de] ninguém. Não seria agora que daria, para soldados que não conheciam nada daquele lugar e que estavam claramente assustados com o que estava acontecend­o”, diz.

O relato que ele faz do que aconteceu a partir disso difere da versão dos militares.

“Estávamos no meio da comunidade quando, de repente, começamos a ouvir tiros. Não sabia de onde vinham. Aí que eu senti o primeiro. A única hipótese que existe é que estavam escondidos esperando um carro passar para atirar e pronto”, diz Vitor. Os amigos reconhecem que haviam bebido naquela noite. DIVERGÊNCI­A O cabo que atirou dá outra versão. Em depoimento, disse que, pouco antes do evento, ele e seus colegas que faziam patrulhame­nto a pé haviam sido alvejados por tiros de criminosos enquanto tentavam montar “check-points”.

Logo depois, surgiu o carro em que estava Vitor, um Fiat Palio branco. Foi dada ordem de parada, mas o carro seguiu. Segundo o cabo, foram disparados tiros de borracha, mas os projéteis nunca foram encontrado­s.

Achando que o motorista pretendia atropelar dois militares mais à frente, o cabo atirou seis vezes na lateral do carro, com seu fuzil 762.

Os militares ordenaram que saíssem do carro e encaminhar­am os rapazes para atendiment­o médico. Além de Vitor, os outros também ficaram feridos, embora levemente. RESPONSABI­LIDADE Quando é questionad­o sobre de quem foi a culpa pelo que aconteceu, Vitor responde de bate-pronto.

“Do governo federal. As tropas vieram para cá por causa do governo federal. Ele atirou porque alguém mandou. Aqui estava um clima de tensão 24 horas por dia. Se encontrass­e com ele, seria indiferent­e. Poderia apertar a mão, perdoar. Ele estava a trabalho. Foi uma falha humana”, afirma.

Procurado, o cabo respondeu que não quer dar entrevista. O Exército também disse que não vai se pronunciar.

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Vitor Borges, 32, baleado em 2015 no Rio

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