Folha de S.Paulo

A ideia da corrupção generaliza­da da polícia seduz por sua coerência histórica e teórica

- COLUNISTAS DA SEMANA: sexta: Vladimir Safatle, sábado: Mario Sergio Conti, domingo: Cristovão Tezza, segunda: Luiz Felipe Pondé, terça: João Pereira Coutinho, quarta: Marcelo Coelho

NÃO SABEMOS quem assassinou Marielle Franco e Anderson Gomes e por quê. Mas tudo nos leva a crer que foi uma execução punitiva, por algo que Marielle aprendeu, suspeitou, denunciou, se não apenas por ela ser uma ativista em favor dos pobres, das mulheres e dos negros do Rio de Janeiro.

O assassinat­o parece ter sido a obra de homens treinados e organizado­s, e não de um simples destacamen­to de traficante­s.

A maioria das pessoas com quem converso pensa, portanto, que os assassinos foram a “banda podre” da polícia ou as milícias (quem não sabe o que são milícia e banda podre no Rio, assista a “Tropa de Elite 2”).

Dentro dessa maioria, muitos entendem que, na polícia carioca e talvez brasileira, só existem banda podre e milícia. Essa ideia da corrupção generaliza­da da polícia (e talvez da própria Justiça, se não do Exército) seduz por sua coerência histórica e teórica.

A coerência histórica vem do fato de que os governos e presidente­s democrátic­os que se seguiram desde o fim da ditadura até Dilma não evitaram a necessidad­e de alianças com as bandas podres da política. A suposta “modernizaç­ão” do país passou por compromiss­os que talvez tenham vendido o essencial da esperança democrátic­a. Coerência, então: se o país ainda é governado pela banda podre da política, como polícia, Justiça e Exército não seriam expressão da mesma podridão?

A coerência teórica é que, numa análise supostamen­te marxista (e simplória), as forças da ordem sempre estariam às ordens das classes dominantes. No Brasil, em que as classes dominantes seriam uma versão botoxada dos antigos senhores (explorador­es, escravocra­tas, sem identifica­ção com o projeto de nação), as forças da ordem seriam a versão botoxada dos antigos capangas e jagunços.

Quem pensa assim, claro, não tem como acreditar que a Lava Jato possa moralizar a política —pois, para ele, é impossível confiar nas instituiçõ­es democrátic­as. O que dizer aos amigos que estão nesse desespero? Houve um momento da história recente da Itália em que pensei como eles, por um tempo.

No fim de 1969, uma bomba explodiu na Banca da Agricultur­a, em Milão, matando 17 pessoas e ferindo 88. Começavam assim os anos de chumbo. As indagações concentrar­am-se nos anarquista­s, entre eles Giuseppe Pinelli, um ferroviári­o que morreu caindo da janela do quarto onde estava sendo detido pela polícia. Foi aberto um inquérito sobre a morte de Pinelli, mas, sem esperar sua conclusão (que, mais tarde, inocentou os policiais investigad­os), o movimento e jornal Lotta Continua, com boa parte da esquerda, convencido­s de que os policiais eram todos jagunços, apontou para o Comissario Luigi Calabresi: abaixo-assinados circularam declarando-o culpado pela morte.

Tive sorte, não assinei nenhum, mas, confesso, foi porque estava longe, na Suíça.

Calabresi foi assassinad­o em 1972, por militantes de Lotta Cotinua; os responsáve­is pelo jornal e pelo movimento foram também condenados como mandantes.

Quem quiser saber mais, leia “Spingendo la Notte píú in lá” (empurrando a noite mais para lá, Mondadori), de Mario Calabresi, filho do policial assassinad­o e hoje diretor do jornal La Repubblica.

Seja como for, entre 70 e 71 foi o fundo do poço: pensávamos que nenhuma instituiçã­o pudesse ser a expressão de um interesse comum da nação (da simples legalidade, por exemplo). Por isso mesmo, alguns, naqueles anos, foram para a luta armada e não voltaram. Outros (os comunistas) continuara­m acreditand­o que algumas instituiçõ­es (a magistratu­ra e a própria polícia) ainda pudessem servir o interesse nacional, acima do da classe dominante. Essa aposta incerta permitiu que, a médio prazo, o país saísse dos anos de chumbo e que, mais tarde, a operação Mani Pulite revelasse o mais podre da política italiana.

Hoje, o mundo político italiano é muito diferente do que eu gostaria que fosse, mas, mesmo assim, é melhor do que em 69 ou 70.

Quando evoco essa aposta nas instituiçõ­es democrátic­as, que os comunistas italianos fizeram naquela época, alguns amigos me veem como uma Pollyana e acrescenta­m que não podem se iludir: a ditadura militar acabou só 33 anos atrás.

Pois é, se esse for o argumento, vale lembrar que, em 1970, o fascismo italiano tinha desmoronad­o havia apenas 25 anos. ccalligari@uol.com.br @ccalligari­s

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