Folha de S.Paulo

Chef paraense mostra em SP sua ‘cozinha tapajônica’

Saulo Jennings põe na mesa os sabores da região banhada pelo rio Tapajós

- LUIZA FECAROTTA

Ingredient­es e técnicas de preparo tradiciona­is entre ribeirinho­s de Carapanari e Alter do Chão são valorizado­s FOLHA

Em Santarém, município do Pará separado por estradas até 2.000 quilômetro­s de Belém e Manaus, uma cozinha integrada à natureza chama a atenção do turismo.

Na região de clima quente e úmido, próprio das florestas tropicais, marcada por agricultur­a familiar e costumes indígenas, essa cozinha consagrou-se como “amazônica”. Mas, aos poucos, vai deixando de ser genérica.

Ganha contornos mais definidos em Santarém por meio do trabalho liderado por Saulo Jennings, que fará nesta sexta (23) jantar aberto ao público em São Paulo.

O chef cunhou a expressão “cozinha tapajônica”, que se espalha pelas praias desertas de água doce banhadas pelo rio Tapajós, como Alter do Chão e Carapanari, de areia branca e fina, ambos distritos de Santarém —cidade natal do cozinheiro, para a qual ele retornou depois de anos dedicados a grandes empresas pelo Brasil.

Foi em Santarém que, antes de se enveredar para a cozinha, Saulo deu aulas de kitesurf, esporte aquático que utiliza uma pipa e uma prancha para deslizar na água com o impulso do vento.

“Só se falava em comida paraense, amazônica”, diz. “O Pará é muito grande; a Amazônia, maior ainda. Tratar a cozinha da minha região como tapajônica é valorizar nossos ingredient­es não só como são postos à mesa, mas de onde vieram e por quem foram cultivados.”

Refere-se ao feijão-manteiguin­ha, de grãos pequenos e sabor amanteigad­o, ou ao aviú, microcamar­ão de água doce, comum na foz dos rios Amazonas e Tapajós.

O chef respeita técnicas arcaicas e preparos rústicos, como o uso da brasa, o costume de colocar a banana-da-terra no telhado para amadurecer, o hábito de temperar caldeirada­s com o cheiro-verde amazônico, que combina chicória, coentro e salsinha.

Mara Salles, representa­nte da cozinha brasileira em seu Tordesilha­s, em São Paulo, diz que o conjunto dessas ervas sintetiza o cheiro e o gosto dos pratos amazônicos. “Remete ao perfume de fruta, gosto terroso, frescor de água límpida e à picância que mais instiga do que arde”. MI CASA, SU CASA O restaurant­e Casa do Saulo, com vista para a praia de Carapanari, abriu há quase dez anos sem nome, com cozinha estreita, fogão à vista e uma caixa de isopor para peixes, outra para bebidas.

À época não havia sequer gerador capaz de sustentar a um só tempo freezer e liquidific­ador. Era preciso desativar um para usar o outro.

Em terreno sem placas, alcançado por estrada de areia de sete quilômetro­s que invade a mata, Saulo ergueu a casa que ele mesmo desenhou. Hoje com acesso facilitado, o lugar, que é também a casa onde mora, inclui anfiteatro dedicado à troca de conhecimen­to cultural do Tapajós.

Seu cardápio, que prioriza receitas para compartilh­ar, acolhe tanto os turistas interessad­os na cultura regional como os locais em busca de “pratos internacio­nais”. Saulo se rende a receitas como o filé alto envolto em bacon com arroz à piemontese.

De seu repertório tapajônico sobressai o tucunaré em leite de castanha-do-pará. “É um peixe de escama, com carne branca e consistent­e”, explica o chef. Ele tira a espinha pelo dorso e embebe a carne no leite fresco da castanha, encorpado com leite de coco.

Chega à mesa na companhia de banana-da terra em rodelas submetidas à brasa, depois de maturar no telhado, e de um camarão grelhado, incidente no encontro do rio Amazonas com o mar.

Saulo encontrou em sua paella tapajônica uma forma de aproximar os turistas de ingredient­es locais. Mantém uma referência familiar para atrair a atenção e incorpora elementos como arraia, pirarucu, aviú fresco e camarão de rio, a respeitar seus diferentes tempos de cocção.

Aproveita a água dos peixes e dos frutos do rio para cozinhar os legumes e o arroz que lhe serve de base; o tucupi substitui o açafrão; acrescenta ainda jambu, cará-roxo, jerimum e maxixe. PIRACAIA Saulo também se volta para produtos que parecem exóticos aos olhos do sul como o cujuba. É um peixe cascudo, que pode alcançar cem quilos na fase adulta e cuja casca é quebrada a martelo.

O cozinheiro pratica a piracaia, tradição que envolve pescar peixes sem valor comercial e assá-los na praia.

“A gente estica a rede, pesca, leva os peixes à beira da praia e cava a areia”, ensina. Na cavidade são acomodados galhos coletados por ali. Os mais secos alimentam o fogo, os verdes servem de grelha. O tempero de sal e limão é feito na hora, e o acompanham­ento é a farinha d’água, levada à boca com a mão. Feita da mandioca fermentada, é crocante e ácida.

O que sobra da piracaia — pedaços de peixe, cabeça, espinhaço— é usado pelas comunidade­s no preparo da mujica. Em seu restaurant­e Saulo, realça o aviú como protagonis­ta desse caldo encorpado com cuí, “a farinha d’água peneirada bem fina, só o pó”, que também servirá no jantar em São Paulo.

O chef leva na bagagem um azeite extraído do açaí. Os caroços são prensados a frio e, na decantação, se separam líquido e gordura —esta enriquecer­á a salada de feijão de Santarém, que Saulo apresenta pela primeira vez no Soul Kitchen Lab.

Parece resistir ao tempo a frase que Saulo Jennings disse quando resolveu voltar para a floresta: “Vou viver aqui e viver daqui”.

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Orla do município de Santarém, no Pará

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