Folha de S.Paulo

Hilda Machado mostra habilidade de se mover por meio de justaposiç­ões drásticas

- LEONARDO GANDOLFI

FOLHA

“Nuvens”, de livro póstumo Hilda Machado organizado por Ricardo Domeneck, reúne a produção da autora, trazendo textos antes publicados em revistas e outros inéditos, datados entre meados dos anos 1990 e 2005, ano próximo de sua morte.

O primeiro poema apresenta já uma marca crucial do livro: a habilidade de se mover por meio de justaposiç­ões drásticas.

Nele, um cômodo se torna um espaço que se equilibra entre duas dimensões, uma que é cenário, outra que é texto: “a polidez dos móveis, avencas, decassílab­os, filmes russos” e “perífrases sobre o paninho de crochê”. Não sem ironia, aspectos físicos dos objetos misturam-se aos bastidores textuais: “o sofá combinando com o tom das exegeses”.

É como se na poesia de Hilda houvesse um tipo de passagem de nível que aproximass­e planos distintos. Por exemplo, no mesmo apartament­o fechado, ela apresenta a imagem aberta do “céu no chão da minha sala”, em que a amplidão se instala como fenda na superfície do piso.

Por falar em céu, o título do livro, depois de Baudelaire (“Amo as nuvens... as nuvens que passam... longe... as maravilhos­as nuvens”), mais do que nomear um estado etéreo, fala de nuvens em deslocamen­to cobrindo superfície­s: “6:30 da manhã / envolto em tule / o Itaim-Bibi”. Isso, sem falar das nuvens que tomam de assalto o céu, tornando-o fechado.

Indo do céu ao mar, o poema intitulado “Azul” cria mais correlaçõe­s ao justapor itens que são dessa cor, desde o “manto de nossa senhora”, passando pelo “papel de Bis” (o chocolate) até chegar a um “galeão afundado em mar de cromakey”.

Aliás, esse efeito especial de vídeo diz algo sobre a escrita dessa autora que também era cineasta. A justaposiç­ão, em seus versos, pode ser tão intensa que se torna superposiç­ão.

O cromakey é uma técnica de gravação que sobrepõe duas imagens por meio da anulação da cor padrão, no caso, o azul. E que tal pensar que a poeta adapta esse efeito aos poemas? A utilização se daria quando uma imagem, muitas vezes já partida, passasse por cima de outra, dando a ver dissemelha­nça e instabilid­ade.

Nesse sentido, sua escrita guarda alguma distância de paradigmas poéticos como o da despersona­lização ou o do testemunho lírico. Autoirônic­a, a obra apela mais para a montagem e para a passagem, ao fazer uso decisivo do fluxo e da interrupçã­o. Acabam ganhando destaque diversos andamentos, vozes e registros. LEONARDO GANDOLFI AUTORA Hilda Machado EDITORA 34 QUANTO R$ 36 (96 págs) AVALIAÇÃO ótimo

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