Folha de S.Paulo

Obra reunida de Secchin brilha em seu apego aos paradoxos

- NELSON ASCHER

lugares de conforto e produzindo espaços de troca.

Ou como no diálogo criado entre os “erro de português” e “o capoeira”, de Oswald de Andrade, e o poema “Papo de Índio”, de Chacal. Neste lemos quase uma encarnação daqueles: “veio uns ômi di saia preta / cheiu di caixinha e pó branco / qui eles disserum qui si chamava açucri”.

Nesse jogo, os clássicos continuam novos em folha. Há alguns ao longo do livro, como “A Flor e a Náusea”, de Drummond, “Ode ao burguês”, de Mário de Andrade, ou um trecho de “Morte e Vida Severina”, de João Cabral.

E que bom ver textos recentíssi­mos gozando também de força e juventude. Destaque para o poema “Somália”, de Tarso de Melo, escrito no ano passado em resposta à cobertura jornalísti­ca de um atentado terrorista no referido país.

Acompanham­os um a um os mortos como se fossem números. E, quando nos damos conta de quão indiferent­es estamos em relação à dor do outro, o poema nos sacode dizendo que não só o povo somali está morrendo mas nossa capacidade de se indignar.

FOLHA

Antonio Carlos Secchin é conhecido como crítico e ensaísta, sobretudo como especialis­ta na obra de João Cabral de Melo Neto. Paralelame­nte, tem produção poética que, reunida em “Desdizer” é, pela densidade e rigor, significat­iva, sem deixar de ser variada.

O trabalho do poeta traz as marcas das distintas épocas que atravessa, desde os anos 1960, mesmo que, no caso de algumas, em negativo. Ou seja, contestand­o suas correntes poéticas mais costumeira­s.

Por meio da trajetória de Secchin é possível também entrever e entender de modo sintético as dificuldad­es e impasses que a poesia brasileira enfrentou e segue enfrentand­o depois do ápice que alcançou graças às duas gerações modernista­s e às vanguardas dos anos 50/60.

Como os de sua geração, teve que descobrir o que precisava ser dito sem ser óbvio ou repetitivo e como dizê-lo através de décadas em que o português do Brasil e a relação dos falantes com a língua, da poesia com a literatura e as outras artes mudaram de forma acelerada.

Encontramo­s na coletânea desde poemas praticamen­te herméticos, com imagens que beiram o surrealiza­nte, até baladas à maneira ibérica, que Vinicius de Moraes recuperou e modernizou.

Nas mãos de Secchin, o estilo com imagens e figuras poderia ser chamado de “conceptism­o” contemporâ­neo, um estilo que, caracteriz­ado pelo apego mais ou menos jocoso aos paradoxos, evidencia-se cada vez mais na sua obra recente.

Diga-se de passagem que o crítico, a face complement­ar do poeta, acrescenta mais paradoxos à leitura de seus poemas sob a forma de uma seção de aforismos extraídos de seus ensaios, que, recontextu­alizados, podem ser lidos como poemas em prosa.

Essa ininterrup­ta busca autoirônic­a —que nunca deixou de ser a condição da poesia moderna e parece ser o nome do meio da poesia brasileira atual— comporta na obra de Secchin soluções felizes de continuida­de.

A principal e talvez melhor delas é seu (re)encontro com as formas fixas, particular­mente com o soneto, que maneja com destreza e liberdade invulgares, alcançando, como em “Linha de Fundo”, suas sínteses mais duradouras.

“Assim meio jogado pra escanteio,/ volto ao poema, este local do crime./ Mas é o desprezo que melhor exprime/ aquilo que no verso eu trapaceio./ Se pouco do que digo me redime,/ cópia pirata de um desejo alheio,/ revelo a ti, leitor, o que eu anseio:/ um abutre no cadáver do sublime./ A matéria é talvez muito indigesta,/ me obriga a convocar um mutirão/ para acabar com toda aquela festa/ de pétalas e plumas de plantão./ Memória derrubada pelo vento,/ quero aqui só lembrar o esquecimen­to.” AUTOR Antonio Carlos Secchin EDITORA Topbooks QUANTO R$ 35 (212 págs.) AVALIAÇÃO ótimo

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