Obra reunida de Secchin brilha em seu apego aos paradoxos
lugares de conforto e produzindo espaços de troca.
Ou como no diálogo criado entre os “erro de português” e “o capoeira”, de Oswald de Andrade, e o poema “Papo de Índio”, de Chacal. Neste lemos quase uma encarnação daqueles: “veio uns ômi di saia preta / cheiu di caixinha e pó branco / qui eles disserum qui si chamava açucri”.
Nesse jogo, os clássicos continuam novos em folha. Há alguns ao longo do livro, como “A Flor e a Náusea”, de Drummond, “Ode ao burguês”, de Mário de Andrade, ou um trecho de “Morte e Vida Severina”, de João Cabral.
E que bom ver textos recentíssimos gozando também de força e juventude. Destaque para o poema “Somália”, de Tarso de Melo, escrito no ano passado em resposta à cobertura jornalística de um atentado terrorista no referido país.
Acompanhamos um a um os mortos como se fossem números. E, quando nos damos conta de quão indiferentes estamos em relação à dor do outro, o poema nos sacode dizendo que não só o povo somali está morrendo mas nossa capacidade de se indignar.
FOLHA
Antonio Carlos Secchin é conhecido como crítico e ensaísta, sobretudo como especialista na obra de João Cabral de Melo Neto. Paralelamente, tem produção poética que, reunida em “Desdizer” é, pela densidade e rigor, significativa, sem deixar de ser variada.
O trabalho do poeta traz as marcas das distintas épocas que atravessa, desde os anos 1960, mesmo que, no caso de algumas, em negativo. Ou seja, contestando suas correntes poéticas mais costumeiras.
Por meio da trajetória de Secchin é possível também entrever e entender de modo sintético as dificuldades e impasses que a poesia brasileira enfrentou e segue enfrentando depois do ápice que alcançou graças às duas gerações modernistas e às vanguardas dos anos 50/60.
Como os de sua geração, teve que descobrir o que precisava ser dito sem ser óbvio ou repetitivo e como dizê-lo através de décadas em que o português do Brasil e a relação dos falantes com a língua, da poesia com a literatura e as outras artes mudaram de forma acelerada.
Encontramos na coletânea desde poemas praticamente herméticos, com imagens que beiram o surrealizante, até baladas à maneira ibérica, que Vinicius de Moraes recuperou e modernizou.
Nas mãos de Secchin, o estilo com imagens e figuras poderia ser chamado de “conceptismo” contemporâneo, um estilo que, caracterizado pelo apego mais ou menos jocoso aos paradoxos, evidencia-se cada vez mais na sua obra recente.
Diga-se de passagem que o crítico, a face complementar do poeta, acrescenta mais paradoxos à leitura de seus poemas sob a forma de uma seção de aforismos extraídos de seus ensaios, que, recontextualizados, podem ser lidos como poemas em prosa.
Essa ininterrupta busca autoirônica —que nunca deixou de ser a condição da poesia moderna e parece ser o nome do meio da poesia brasileira atual— comporta na obra de Secchin soluções felizes de continuidade.
A principal e talvez melhor delas é seu (re)encontro com as formas fixas, particularmente com o soneto, que maneja com destreza e liberdade invulgares, alcançando, como em “Linha de Fundo”, suas sínteses mais duradouras.
“Assim meio jogado pra escanteio,/ volto ao poema, este local do crime./ Mas é o desprezo que melhor exprime/ aquilo que no verso eu trapaceio./ Se pouco do que digo me redime,/ cópia pirata de um desejo alheio,/ revelo a ti, leitor, o que eu anseio:/ um abutre no cadáver do sublime./ A matéria é talvez muito indigesta,/ me obriga a convocar um mutirão/ para acabar com toda aquela festa/ de pétalas e plumas de plantão./ Memória derrubada pelo vento,/ quero aqui só lembrar o esquecimento.” AUTOR Antonio Carlos Secchin EDITORA Topbooks QUANTO R$ 35 (212 págs.) AVALIAÇÃO ótimo