Folha de S.Paulo

Na cidade da placa fria

-

RIO DE JANEIRO - Uma página de Rubem Braga nos faz ter saudade daquilo que não vivemos. O lotação, por exemplo, espécie de ancestral das atuais vans. Era um micro-ônibus, desconfort­ável, caro e perigoso, comum nas ruas do Rio nas décadas de 1940 e 1950, mas que, nas mãos do cronista, surge com ares deliciosam­ente antigos e românticos.

Em “Dia da Marinha”, texto publicado em 1946, encontramo­s o velho Braga entre oito passageiro­s, “estreitame­nte ligados e profusamen­te amontoados”. Viaja, na volta do trabalho, melancólic­o. Para distrair-se, presta atenção na conversa antipática e sussurrant­e de um casal, moça de olhos azuis e rapaz moreno. Eles discutem uma crise de relacionam­ento.

De repente, na enseada de Botafogo, surge uma esquadra na baía. E tudo se modifica: “(...) que me seja dado abençoar esses amantes e dizer que assim, os cabelos batidos pelo vento, a cara séria olhando para frente, essa mulher de olhos azuis é bela como tudo o que é belo: cavalo galopando no campo, navio que avança pelo mar”. O lotação pega o túnel, dobra à direita, chegando enfim ao destino: Copacabana.

Lotação e van são ambos um quebra-galho, fruto das deficiênci­as do transporte coletivo. Aquele ainda aparecia em crônicas. As vans costumam frequentar as páginas de polícia: na zona oeste, circulam de forma ilegal, pagando taxas a milicianos. O problema se agrava e se expande para outros bairros. A prefeitura está no meio de uma guerra particular com donos de empresas de ônibus. O resultado é que as linhas têm sumido, sem explicação ou cobrança.

Enquanto isso, Marcelo Crivella roda na cidade num carro com placa fria. Sem constar no cadastro no Departamen­to Nacional de Trânsito, não é possível saber o número de infrações que cometeu. Em 2017, o veículo oficial usado pelo prefeito havia recebido 55 multas, 38 delas por excesso de velocidade. NABIL BONDUKI

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil