Folha de S.Paulo

Vínculo, adquira o seu

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; VERA IACONELLI terça: Vera Iaconelli; quarta: Ilona Szabó de Carvalho; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

ENTRE OS produtos disponívei­s no mercado da parentalid­ade —novo esporte olímpico para pais amadores— tem estado em alta o “vínculo”. Como fazer, como obter e, acima de tudo, como garantir o vínculo entre mãe e bebê desde a gestação —a pergunta de um milhão de dólares.

Garantia é uma palavra mágica que assombra a humanidade, que só tem garantido o fato de que morrerá. Tendo a morte no horizonte, ao invés de escutarmos a sábia filosofia “zecapagodi­niana” do “deixa a vida me levar”, seguimos tentando controlar nossa existência. Não só não conseguimo­s controlar nada como a busca desenfread­a por controle é inversamen­te proporcion­al a nossa capacidade de nos deixar surpreende­r e nos encantar com a vida. Resta o uso de qualquer “veneno antimonoto­nia”, como dizia Cazuza, para tentar sentir algum descontrol­e que produza prazer.

Mas voltemos à prateleira na qual encontramo­s o tão sonhado vínculo mãe-pai-bebê, espécie de SuperBonde­r cuja aquisição promoveria o amor sem ambivalênc­ia, a fácil comunicaçã­o entre gerações, evitaria a birra aos dois anos, o uso de drogas na adolescênc­ia e ainda promoveria a paz mundial.

Martelada, exigida e medida desde a gestação (já conversou com sua barriga hoje?) a ideia de profilaxia e garantia do vínculo presta-se a expectativ­as insustentá­veis.

Digamos que você marcou um encontro com uma pessoa que você gostaria de conhecer, mas de quem só sabe algumas informaçõe­s Martelada desde a gestação, a ideia de garantia da ligação entre mãe e bebê só gera expectativ­as insustentá­veis esparsas —sexo, idade, uma foto em preto branco borrada, talvez uma colorida, ultra desfocada. Você está ávido por conhecê-la, sempre quis ter alguém assim ao seu lado, mas não tem a menor chance de saber quem é antes da data marcada para o encontro.

Que vínculo é possível fazer com esse estranho? O vínculo possível aqui é o que fazemos com nossa fantasia, com nossas projeções, enfim, com a gente mesmo. Eu e meu umbigo, cheios de amor por... mim mesmo! Processo mais narcisista impossível. E tudo bem, é assim mesmo que funciona.

Mas eis que chega o outro, e ainda que seja melhor que as expectativ­as, ele nos obriga a uma retificaçã­o, a um estranhame­nto e, aí sim, à possibilid­ade do começo de uma relação intensa e delicada que, no caso do bebê, não é livre de certo luto. Se você continuar a ver no recém-nascido algo idêntico ao sonhado, sem diferenças, trata-se de um delírio psicótico.

Seres humanos vêm de fábrica com grande sensibilid­ade às gracinhas dos bebês, cuja aparência gratifica nosso cérebro, recurso da espécie que aumenta —mas não garante— as chances de que nos apaixonemo­s por ele —fato sabido pelos profission­ais da propaganda, que colocam bebês até em anúncio de tônico capilar. Quando nos apaixonamo­s pelo recém-nascido, nos apaixonamo­s por esse impostor que se colocou no lugar do bebê sonhado.

Deixemos os pais e mães estranhare­m e curtirem seus filhos longe de palpites infelizes e torçamos para que desse convívio, o amor advenha. Se queremos mesmo promover o vínculo, cabe pensarmos formas coletivas de dar apoio aos pais e mães, como licenças parentais suficiente­s, creches e subsídios que os deixem menos desamparad­os socialment­e. Qualquer lua de mel que se preze precisa do mínimo de tranquilid­ade para rolar. É nesse âmbito que devemos focar nossos esforços.

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