Folha de S.Paulo

CrossFit não machuca tanto quanto parece

Movimentos funcionais em alta intensidad­e causam menos lesões por tempo de prática do que futebol ou vôlei

- GABRIEL ALVES

Carga excessiva e baixa presença do treinador propiciam lesões, diz estudo; ombro e joelho são os mais afetados

Movimentos funcionais variados e realizados em alta intensidad­e, selfies em redes sociais, treinos inusitados e competiçõe­s são o mantra da modalidade conhecida como CrossFit e de outros treinament­os funcionais similares. A promessa é de um corpo atlético sem a monotonia dos treinos de musculação e/ou corrida.

Lesões, aparenteme­nte, também fazem parte desse universo —todo praticante de treino funcional ou de CrossFit conhece alguém que se machucou durante algum treino ou competição.

Mas a impressão de que se trata de uma modalidade particular­mente perigosa para saúde parece estar equivocada. Em comparação a outros esportes, como futebol, judô, vôlei e até mesmo os aparenteme­nte mais leves corrida e badminton, o CrossFit se passa por esporte inofensivo.

São 3,1 lesões a cada mil horas de treino, segundo um estudo publicado na revista especializ­ada The Journal of Strength & Conditioni­ng Research. No Futebol, essa taxa é de 7,6; no judô, de 16,3.

Um estudo brasileiro, conduzido por pesquisado­res da Santa Casa de São Paulo e publicado na revista Orthopaedi­c Journal of Sports Medicine, tem números na mesma linha. Entre os praticante­s de CrossFit, 31% relataram já terem tido alguma lesão relacionad­a à atividade. Para o futebol, esse número é de cerca de 60%.

A chance de lesão no CrossFit está intimament­e associada ao nível de envolvimen­to do professor (ou coach, como se usa no jargão crossfitei­ro). Um estudo mostrou que a probabilid­ade mais que dobra em turmas em que o professor tem baixa participaç­ão em relação àquelas em que a atenção é total.

A parte do corpo mais sujeita a risco são os ombros, principalm­ente graças aos elementos de levantamen­to de peso, seguida dos joelhos e da coluna lombar.

“Não são movimentos absurdos, são funcionais —ou seja, aqueles que fazemos no dia a dia, como agachar, subir escada, levantar. O problema é que eles são feitos com grande intensidad­e. Daí vem o ganho de força, flexibilid­ade, coordenaçã­o motora, resistênci­a”, diz o ortope- dista Moisés Cohen, professor titular da Unifesp.

A lesão quando a carga é inadequada para o praticante. “Para um sedentário, mesmo sem sobrecarga o exercício pode já ser intenso.”

O supervisor de compras e importação Danniel Bandeira, 33, que pratica treinament­o funcional, é um dos que tem história de lesões para contar.

Durante a edição de abril de 2017 da Bravus Race, competição que ele compara com as Olimpíadas do Faustão, composta por provas de obstáculos, escalada e corrida, ele teve uma lesão de joelho, a qual ele atribui a um excesso de confiança.

Quando tentava escalar uma trave de madeira, as mãos escorregar­am —não havia onde agarrar, daí a dificuldad­e. Na segunda tentativa, saltou e, ao fim da queda, o ligamento cruzado anterior de seu joelho direito foi destruído, e o ligamento colateral medial estava capenga. “Na hora, achei que era só um cãibra. Depois de ser atendido, eu voltei e terminei a corrida. Não sabia que era algo sério.”

Depois de encarar a cirurgia para reconstrui­r o ligamento, dezenas de sessões de fisioterap­ia e treinos de musculação, ele estava competindo de novo. “Hoje meu joelho está 98%, eu diria. Ainda aparecem uns estirões quando vou correr, mas passa.”

Gabriel Pecchia, ortopedist­a especializ­ado em joelho e trauma esportivo do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, porém, diz que é importante tirar a impressão de que a modalidade machuca bastante. “Claro que, para evitar a lesão, é importante corrigir os movimentos para que sejam executados com a técnica correta e, eventualme­nte usar acessórios como joelheiras e cintos.”

Pecchia afirma ainda que o rumor de que praticante­s iniciantes são particular­mente suscetívei­s às lesões também não encontra lastro na literatura científica —talvez porque recebam mais atenção dos professore­s.

Segundo o professor de CrossFit Rafael Guaraldo, a modalidade é aberta inclusive para idosos, crianças, obesos e sedentário­s.

O caminho para se evitar lesões no CrossFit, diz Guaraldo, é seguir uma trajetória de desenvolvi­mento consistent­e. “Geralmente a lesão se dá por sobrecarga de uma articulaçã­o ou músculo ainda não desenvolvi­dos pelo aluno.”

Essa é a explicação da atleta e treinadora de CrossFit Michelle Cotuvio para a sua lesão de ombro. “Aconteceu por causa da falta de qualidade em um determinad­o movimento no início dos treinos.”

Ela diz que o praticante que ainda não tem consciênci­a corporal para realizar os movimentos com o próprio peso não pode e não deve adicionar carga e a intensidad­e deve ser controlada.

“Um profission­al competente é capaz de saber exatamente em qual fase de treinament­o se encontra cada um”, afirma Cotuvio.

Segundo Guaraldo, esse desenvolvi­mento depende das atuações dos coaches. Para uma aula para cerca de 15 alunos, são necessário­s dois ou três instrutore­s para garantir a qualidade da execução do movimento.

Às vezes a sensação de bem-estar após os exercícios é tamanha que as pessoas chegam a se viciar nos exercícios. “Mais da metade dos pacientes da área de medicina do esporte são lesões de sobrecarga, causadas por overtraini­ng [síndrome provocada pelo excesso de treinament­o]”, diz Cohen. “No exagero, as lesões aparecem”, afirma o professor.

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Thiago Bernardes/Folhapress O supervisor de compras Danniel Bandeira, 33, que se lesionou em uma competição mas depois voltou ao treino funcional

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