Folha de S.Paulo

O QUE NÃO É ESPELHO

Em ‘A Ira de Narciso’, que ganha primeira montagem brasileira no Festival de Curitiba, autor franco-uruguaio Sergio Blanco cria autoficção e desmistifi­ca egolatria

- MARIA LUÍSA BARSANELLI

A egolatria talvez não fosse a questão de Narciso. O mito sobre o homem que admirava seu reflexo nas águas tem outras leituras, como a do poeta grego Pausânias, segundo quem Narciso, saudoso, buscava no reflexo a imagem da irmã gêmea que morrera.

Seria, assim, uma procura não de si mesmo, mas do outro, explica o dramaturgo franco-uruguaio Sergio Blanco.

É justamente essa a sua investigaç­ão em “A Ira de Narciso”, que ganha sua primeira montagem brasileira, dirigida por Yara de Novaes, com atuação de Gilberto Gawronski e tradução de Celso Curi.

A produção estreia no Festival de Teatro de Curitiba, que começa nesta terça (27), e chega a São Paulo em 11/4.

Blanco toma emprestado um gênero por vezes também tido como ególatra, o da autoficção. Cria um protagonis­ta que reproduz o próprio autor, em visita à Eslovênia para uma palestra sobre Narciso.

Ali mescla três camadas: a conferênci­a, uma investigaç­ão em seu hotel, onde encontra uma uma misteriosa mancha de sangue, e uma discussão sobre o fazer artístico.

“A autoficção coloca um questionam­ento básico da arte, sobre o que é verdade ou mentira, o que é autêntico ou não”, afirma Blanco à Folha.

O gênero, que parte de dados verídicos para chegar à ficção, é para ele um “pacto de mentira”. “A autoficção triunfa quanto mais engana.”

É uma maneira “de que o real e o irreal convivam num mesmo corpo, num mesmo espaço”. Mas não significar­ia centrar-se em si mesmo. Ao contrário: seria um modo de abrir-se para que o outro se reconheça naquele discurso.

“É um processo de desnudar-se e ao mesmo tempo vestir-se, de se transforma­r noutra coisa, num corpo que possa ser o espelho dos demais.” PENSAMENTO A investigaç­ão artística de Blanco surgiu cedo. Nascido em 1971 numa família de atores e escritores de Montevidéu, acompanhav­a, já aos dez anos, as aulas de teatro da irmã mais velha, Roxana, hoje atriz. Aos 21, mudou-se para a França, onde estudou filologia clássica e direção teatral na Comédie-Française.

Ainda hoje mora em Paris, decisão mais linguístic­a do que geográfica, segundo ele. “O francês é uma língua que me autorizou o pensamento.”

Mesmo assim, segue escrevendo em espanhol e trabalhand­o com artistas uruguaios. Em 2008, fundou com os conterrâne­os Gabriel Calderón e Mariana Percovich o Complot (Compañía de Artes Escénicas Contemporá­neas).

A língua hispânica ele também usa na madrilenha Universida­de Carlos 3º, onde leciona na cátedra do dramaturgo espanhol Juan Mayorga.

Em seus trabalhos, Blanco costuma criar um elemento de perturbaçã­o entre o espectador e a obra, seja por borrar as fronteiras entre a verdade e a mentira, seja por explorar arquétipos humanos. É uma forma, diz Gawronski, de colocar em cena os antagonism­os inerentes ao próprio teatro.

Não à toa, parte muitas vezes de mitos, como em “Kassandra” (2008), na qual a heroína troiana, imigrante, se vira com um inglês precário e produtos contraband­eados; e em “Tebas Land”, que mescla a tragédia de Édipo com o julgamento de um parricida.

Por esta última, que terá uma encenação, no Rio, de Victor Garcia Peralta, Branco está indicado a melhor autor no Max, um dos principais prêmios teatrais da Espanha.

Apesar de recorrer ao passado, Blanco não nega o presente. “A tecnologia é uma força contra a qual não podemos lutar, não só no formato, mas na construção dramatúrgi­ca. É preciso se adaptar aos mecanismos de nossas épo- cas, como fizeram Shakespear­e, Tchékhov. Senão, fracassamo­s”, afirma ele.

Em “Cuando Pases sobre mi Tumba” (quando passares por minha tumba, de 2017), escreveu à mão e com sangue (de touro, diluído em água) para transmitir seu esforço no texto, sobre um escritor que prepara sua eutanásia. Processo “muito interessan­te, mas cansativo, que me deu uma tendinite no braço”, conta.

E é o teatro, de acordo com ele, a arte que está mais viva do que nunca. “O cinema está morrendo, é uma linguagem do século 20, período muito totalitári­o com as imagens, quando uns decidiam o que os outros veriam”.

Isso porque não estaríamos mais numa época da imagem, mas do olhar. “Com a revolução tecnológic­a, temos um mecanismo muito mais equitativo da imagem, em que queremos ver e ser vistos. E o teatro é a arte que mais correspond­e a isso, porque ali acontece o olhar duplo, para o palco e para o público.” QUANDO 5 e 6/4, às 21h (Curitiba); de 11/4 a 12/5, qua. (apenas 11/4) e qui. a sáb., às 20h30 (SP) ONDE Teatro Sesc da Esquina, r. Visconde do Rio Branco, 969, Curitiba, tel. (41) 3304-2222; Sesc Pinheiros, r. Paes Leme, 195, São Paulo, tel. (11) 3095-9400 QUANTO R$ 70 (Curitiba) e de R$ 7,50 a R$ 25 (SP) CLASSIFICA­ÇÃO 18 anos

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