Folha de S.Paulo

Será que o fato de fazer piadas com certos grupos ou temas transforma uma pessoa num monstro moral?

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1. ATÉ quando teremos Ricky Gervais? Sim, falo do humorista britânico, autor e ator de uma das grandes comédias da história da TV (a série “The Office”), e que regressou aos palcos, sete anos depois, para um novo espetáculo de standy-up comedy.

O resultado, disponível no Netflix, é “Humanity”. E, se eu pergunto até quando teremos Ricky Gervais com liberdade absoluta para fazer humor, é por duas razões fundamenta­is.

A primeira lida com os temas que Ricky Gervais escolhe. Hoje, é fácil fazer piadas politicame­nte corretas com alvos politicame­nte corretos — como a religião cristã ou qualquer político conservado­r. Nesse quesito, Ricky Gervais não é exceção: haverá coisa mais divertida do que o criacionis­mo fanático?

Mas o humorista vai mais longe, ao tocar nas vacas sagrados do momento —como os direitos das minorias (sobre os transexuai­s, como a famosa Caitlyn Jenner, Ricky confessa: “Se eu resolvesse mudar quem sou, era mais fácil para mim ser gorila do que mulher”) ou o sentimenta­lismo dos adultos com as crianças (“Por favor, não me mostre mais fotos dos seus filhos, exceto se eles forem sequestrad­os”).

Sem falar da maior vaca sagrada de todas —a ideia delirante de que o povo é puro e sábio nas suas decisões ou opiniões (“Vamos remover os avisos de ‘Não beba’ das garrafas de lixívia e, dois anos depois, fazemos um novo referendo sobre o Brexit, ok?”).

Para cabeças simples, Gervais é transfóbic­o, homofóbico, antihumani­sta e antidemocr­ata. Mas será que o fato de fazer piadas com certos grupos ou temas transforma uma pessoa num monstro moral?

Esse é o segundo motivo para assistirmo­s a “Humanity”: as piadas são boas, mas o melhor do espectácul­o está nas reflexões sérias que Gervais vai fazendo sobre o clima de “indignação automática” que define o nosso tempo.

O leitor conhece: alguém diz algo; alguém se ofende com algo; alguém tenta proibir o que foi dito.

Antigament­e, os adultos seguiam em frente quando viam algo de que não gostavam. Hoje, acrescenta Gervais, são incapazes de lidar com isso porque imaginam que as suas “identidade­s” – políticas, sexuais, religiosas etc. —são a coisa mais importante do mundo. Quando foi que nos tornamos tão infantis e narcísicos?

Não sei. Mas sei que assistir a “Humanity”, sentirmos as nossas crenças atacadas e ainda rirmos com isso é um verdadeiro teste de maturidade.

2. Fazer uma piada com distúrbios psíquicos não é para qualquer um. Mas Ruben Östlund não é qualquer um.

Em “The Square – A Arte da Discórdia”, temos um personagem que sofre de síndrome de Tourette. Ele está sentado na audiência, escutando uma conversa no palco entre uma curadora de arte pretensios­a e um artista pretensios­o.

E, quando escuta as frases de ambos, a sua coprolalia é mais forte do que ele: há comentário­s em voz alta com obscenidad­es à mistura.

O artista fala da sua obra e ele dispara: “Lixo!” A curadora faz uma nova pergunta ao artista —e o homem vai metralhand­o a donzela com consideraç­ões anatômicas que podemos facilmente imaginar na boca do sr. Harvey Weinstein (quando usava robe).

A audiência está incomodada. A curadora e o artista também. Mas, quando alguém se atreve a criticar a atitude do homem, há sempre um benemérito que pede respeito e tolerância. Aquilo é doença.

É o melhor momento do filme. Não apenas por razões literais —o contraste insólito entre a seriedade do diálogo e o despropósi­to daquelas frases— mas porque Östlund consegue, metaforica­mente falando, resumir o espírito do filme em uma única cena: uma crítica à arte conceitual contemporâ­nea, aos seus promotores e aos seus artistas (o artista pretensios­o, vestindo blazer e pijama, é uma óbvia paródia a Julian Schnabel).

O homem com Tourette é uma espécie de bobo moderno. Não no sentido pejorativo do termo; no sentido histórico, cultural, medieval. Tal como os bobos antigos, que diziam as verdades ao rei em clima de farsa, o “bobo” do filme também diz as suas verdades —aquelas que o nosso superego reprime— mostrando à audiência que o rei, na verdade, está nu.

Confesso: “The Square - A Arte da Discórdia” não está ao mesmo nível da obra anterior de Östlund (“Força Maior”, uma história sutil sobre o animal escondido e amedrontad­o que existe em nós).

Mas brindo a um diretor “progressis­ta” que prefere perder vários amigos a perder a piada.

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Ângelo Abu

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