Folha de S.Paulo

PM mata estudante em confronto no Rio

Edson Luiz Souto, 18, foi baleado no peito durante protesto em restaurant­e; cortejo levou corpo até Assembleia

- RODRIGO VIZEU

O estudante secundaris­ta Edson Luiz de Lima Souto, 18,

foi morto com um tiro no peito nesta quinta-feira (28) pela tropa de choque da Polícia Militar da Guanabara durante um confronto no restaurant­e estudantil Calabouço, no centro do Rio.

Há relatos ainda de pelo menos seis civis feridos, entre eles o também estudante Benedito Frazão Dutra, 20.

O episódio começou com um protesto dos estudantes no restaurant­e para reivindica­r comida de melhor qualidade e mais higiene. Também pediam a conclusão das obras no restaurant­e, que mudou no ano passado para uma área próxima de seu endereço antigo para dar espaçoàcon­struçãodeu­mtrevo.

Por fim, os estudantes pediam acesso livre ao local de alimentaçã­o. Segundo eles, alunos vinham sendo barrados sob o pretexto de evitar a “infiltraçã­o de elementos estranhos”.

Para as autoridade­s, no local, frequentad­o por alunos de 2º grau e vestibulan­dos de baixa renda, circulam agitadores críticos ao regime militar, que completa quatro anos no poder na semana que vem.

Além de protestar, como fazem recorrente­mente no edifício, os cerca de 300 estudantes presentes no Calabouço planejavam uma passeata até a Assembleia Legislativ­a.

Às 18h, chegou no local a tropa da PM —em torno de 25 homens com armas de fogo.

“Foi uma verdadeira operação de guerra”, disse Elinor Mendes Brito, presidente da Frente Unida dos Estudantes do Calabouço.

Os secundaris­tas inicialmen­te fugiram, mas depois A edição da

do dia seguinte informou incorretam­ente, como fizeram algumas autoridade­s e outros jornais, que o nome de Edson era Nelson, e que tinha 16 anos. Se estivesse vivo, ele teria 68 anos

Folha

Com o território do atual município do Rio, o estado existiu de 1960, quando deixou de ser o Distrito Federal, até 1975, quando foi incorporad­o ao estado do Rio

Morreu dias depois em razão dos ferimentos

No aterro do Flamengo, o trevo leva hoje o nome de Edson Luiz começaram a vaiar e lançar pedras nos policiais.

“Quando os soldados voltaram, começou o tiroteio, vindo da galeria do edifício Legião Brasileira de Assistênci­a”, contou o cartunista Ziraldo Alves Pinto, 35, que observou o ocorrido da janela da revista Visão, onde trabalha. “Os estudantes fugiram em polvorosa das proximidad­es e, neste momento, eu vi um policial, em posição caracterís­tica de tiro, saindo da galeria, e alguém caindo.”

Segundo o jornal O Globo, o disparo ocorreu enquanto um grupo de estudantes tentava libertar Edson Luiz, que havia sido detido pelos PMs.

Há controvérs­ias sobre quem deu o tiro fatal no jovem. Testemunha­s citam como autor o aspirante da PM Aloísio Raposo. Parlamenta­res no Rio e em Brasília, porém, apontaram em discursos o tenente Alcindo Costa como o atirador.

O secretário estadual de Saúde, Hildebrand­o Marinho, disse que viu de sua janela de trabalho os estudantes iniciarem o conflito, agredindo

Fundador, em 1969, do jornal satírico O Pasquim, crítico da ditadura, chegou a ser preso após a edição do AI5, no fim de 1968. Tem hoje 85 anos

Citado por Zuenir Ventura em “1968 - O ano que não terminou”

Entre eles, o deputado federal Márcio Moreira Alves (MDBGB), autor de um discurso crítico ao governo que, meses depois, contribuir­ia para a edição do AI-5. Morreu em 2009

Acreditand­o que Edson Luiz ainda estava vivo, seus amigos o levaram à Santa Casa de Misericórd­ia. Constatada a morte, o corpo foi transporta­do até a Assembleia. No caminho, alunos jogaram pedras na embaixada dos EUA.

O cadáver foi colocado sobre uma mesa do saguão de entrada do prédio do Legislativ­o estadual. Os estudantes não permitiram que policiais retirassem-no dali.

Até a conclusão desta edição, velavam o corpo no local, com filas para vê-lo. Entre os que prestaram homenagens à vítima estão artistas e intelectua­is como Tônia Carrero, Hugo Carvana, Di Cavalcanti, Ferreira Gullar, Nara Leão, Cacá Diegues e Arnado Jabor.

Natural de Belém (PA), Edson Luiz nasceu em uma família pobre e migrou para o Rio para estudar. Além de estar matriculad­o no Instituto Cooperativ­o de Ensino, onde funciona o Calabouço, trabalhou como faxineiro.

Ele participav­a dos protestos por melhorias no restaurant­e, onde comia por dois cruzeiros, mas não era uma liderança do movimento estudantil da cidade.

Pelo país, estudantes anunciaram greves e assembleia­s permanente­s.

O corpo de Edison Luiz será enterrado nesta sexta-feira (29) no Cemitério São João Batista, no Rio.

Cerca de R$ 4,70, em valores de hoje

Um cortejo de cerca de 50 mil pessoas acompanhou o corpo até o cemitério. A missa de sétimo dia, na Candelária, foi um dos maiores atos da contestaçã­o à ditadura até então. Ficou célebre, entre outras, a frase de protesto “Mataram um estudante, podia ser seu filho!”

Governador de 1965 a 1971, morreu em 1981

Presidiu o país de 1967 a 1969, quando sofreu um derrame e foi substituíd­o por uma junta militar O governador da Guanabara, Negrão de Lima, anunciou, em nota, o afastament­o do general Osvaldo Niemeyer Lisboa, superinten­dente executivo da polícia. O oficial relatara que a tropa foi enviada ao Calabouço para impedir protesto contra a guerra do Vietnã.

O governador se disse “profundame­nte chocado com a morte ocorrida na cidade” e que sempre deu “severas instruções para que se mantivesse intransige­ntemente a ordem, sem recurso a processo que pudesse ocasionar fatos como os de hoje à noite”.

Ele ordenou o recolhimen­to ao quartel dos PMs envolvidos no caso, a libertação de estudantes presos e a instauraçã­o de uma investigaç­ão a cargo do Ministério Público.

O protesto complica a situação de Negrão de Lima. Ligado à ordem pré-1964, ele governa sob dupla pressão: do MDB, que lhe dá sustentaçã­o estadual e faz oposição ao Planalto, e da linha-dura do governo federal, que vê com maus olhos não ter alguém mais fiel à frente da Guanabara. O presidente Costa e Silva lamentou o ocorrido. Nos bastidores, o governo federal recriminou a ação da PM, buscando se distanciar do ocorrido e defendendo punições exemplares.

O episódio também preocupa porque promete gerar instabilid­ade no momento em que o governo Costa e Silva tem emitido alguns sinais no sentido de promover algum tipo de distensão política. EDGAR SILVA

FOLHA PUBLICA SÉRIE SOBRE 1968

Reportagen­s relatam, como se tivessem ocorrido nos dias de hoje, fatos que marcaram ano de profundas mudanças no mundo e no Brasil

Que não ocorreram. Embora cite Alcindo como possível autor do tiro, o relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 2014, não é categórico sobre a responsabi­lidade do tenente, defendendo “a continuida­de das investigaç­ões e responsabi­lização dos demais agentes envolvidos”

O que também não ocorreu. A morte de Edson Luiz foi o 1º grande acontecime­nto de uma escalada de crises e manifestaç­ões que elevou a tensão do país até a edição pelo governo, em dezembro de 68, do AI-5, que aprofundou a ditadura

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28.mar.1968/Agência O Globo Estudantes velam, na Assembleia da Guanabara, corpo do paraense Edson Luiz de Lima Souto, 18, morto com tiro no peito pela PM do estado; Planalto buscou distância do episódio
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Morte do estudante foi principal destaque da capa da Folha em 29.mar.1968

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