Folha de S.Paulo

Herói de série de TV seria risco para operações

Delegado justiceiro de “O Mecanismo” mostra condutas que ajudam advogados a anular grandes investigaç­ões

- FLÁVIO FERREIRA

A série da Netflix “O Mecanismo”, inspirada na Operação Lava Jato, minimiza o principal mérito da investigaç­ão do caso na vida real: o cuidado de policiais e procurador­es em não dar margem a anulações pela Justiça.

O personagem protagonis­ta do seriado, delegado Marco Ruffo, interpreta­do por Selton Mello, exibe as condutas que normalment­e são exploradas pelos advogados de políticos e empresário­s para barrar grandes apurações.

Os arroubos e voluntaris­mos de investigad­ores que se consideram “do lado do bem” e acreditam ser necessário “enfrentar o sistema” já levaram vários casos para o arquivo desde o início da fase de grandes operações da Polícia Federal, em 2003, no governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O melhor exemplo desse tipo de policial é o ex-delegado da PF Protógenes Queiroz, titular da Operação Satiagraha, deflagrada em 2008 e que teve como foco supostos crimes financeiro­s cometidos pelo banqueiro Daniel Dantas.

Protógenes conduziu a Satiagraha de forma quixotesca. Usou de maneira ilegal agentes da Abin (Agência Brasileira de Inteligênc­ia) para grampear suspeitos e realizou gravações de encontros com investigad­os com a ajuda da equipe de uma emissora de TV.

Por mais que pudesse ter boas intenções, o delegado deu tanta munição para as defesas dos acusados que não sobrou nada das apurações.

Na década de 2010, erros como os de Protógenes tornaram-se uma praga na PF.

Ante a anulação de várias investigaç­ões pela Justiça em razão de excessos de delegados, em 2013 a PF chegou a criar uma espécie de manual de condutas a serem evitadas.

Em entrevista à Folha em março daquele ano, o então diretor-geral da PF, Leandro Daiello, disse que lambanças em operações como a Satiagraha levaram a polícia a priorizar técnicas de investigaç­ão menos invasivas.

O fato de a força-tarefa da Lava Jato não ter valentões salvadores da pátria chegou a ser lamentado pelas defesas em ação na operação.

Em uma conversa informal, um advogado atuante no caso chegou a dizer: “que pena que a PF não está deixando a tigrada solta”.

É preciso admitir que uma história de condutas cuidadosas e sem grandes sobressalt­os dificilmen­te renderia uma boa série ficcional.

Porém, é melhor para o combate à corrupção no país que nenhum investigad­or se inspire no delegado Ruffo.

Também vale notar na série o turbulento romance entre a delegada Verena e o procurador da República Claudio Amadeu, que funciona como uma metáfora da relação entre a Polícia Federal e o Ministério Público Federal.

Nas últimas décadas tem ocorrido uma grande disputa de poder entre as instituiçõ­es, que teve seu ponto de maior tensão em 2013.

Naquele ano, entrou em pauta a proposta de emenda à Constituiç­ão nº 37, que restringia os poderes de investigaç­ão dos procurador­es.

Com apoio dos integrante­s da PF, a PEC 37 tinha grande chance de ser aprovada, mas as manifestaç­ões de junho de 2013 ajudaram a enterrar o projeto legislativ­o.

Na série, a delegada consegue resultados nas investigaç­ões sobre o doleiro Ibrahim, mas o procurador faz um acordo de delação premiada com o criminoso, e acaba levando os louros da apuração.

Em outro episódio, após uma noite juntos, o procura- Doleiro Ibrahim Ator: Enrique Dias > Doleiro Alberto Youssef > Principal inimigo de Ruffo, é operador financeiro de políticos e empreiteir­os Presidente Janete Ruscov Atriz: Sura Berditchev­sky > Ex-presidente Dilma Rousseff > Em campanha, a presidente acompanha com preocupaçã­o a Lava Jato Político de oposição Lucio Lemes Ator: Michel Bercovicht > Senador Aécio Neves (PSDB-MG) > Bon vivant, político busca atuar para minar a candidatur­a da presidente Janete Inspiração dor bisbilhota o computador da delegada e vê que ela obteve dados de suspeitos no exterior. Com as informaçõe­s, ele mais uma vez passa por cima da delegada e avança sozinho no caso.

Na Lava Jato, apesar de dificuldad­es, o trabalho conjunto de delegados e procurador­es seguiu bem até o momento do acordo de colaboraçã­o premiada de executivos da empreiteir­a Odebrecht.

Encarada como o ponto alto do caso, essa delação marcou uma ruptura entre as instituiçõ­es, que até hoje é sentida nas apurações. Sob o argumento de que a PF poderia vazar as colaboraçõ­es, o Ministério Público escanteou os policiais do acordo.

Em “O Mecanismo”, certamente a relação de amor e ódio entre a delegada e o procurador ainda vai render muitas cenas quentes.

Na vida real, o melhor seria uma DR definitiva entre as instituiçõ­es para acabar de vez com as desavenças, pois só os criminosos ganham com essa disputa de poder.

Ainda chama a atenção na série o esforço de didatismo sobre a Lava Jato.

Todavia, essa busca levou a um trecho que força a barra na inverossim­ilhança.

É a sequência em que, em um momento epifânico, o delegado Ruffo desvenda o mecanismo de corrupção na estatal Petrobrasi­l. Como quem descobre uma nova lei da física, Ruffo desenha em um quadro o simplório esquema “empreiteir­as/operadores/ agente público/Petrobrasi­l”.

Causa estranheza ver um delegado que diz ter mais de de 20 anos de carreira demorar tanto tempo para sacar como a corrupção acontece.

Após “O Mecanismo” e o filme “Polícia Federal - A Lei é Para Todos”, também baseado na Lava Jato, agora a operação merece um bom documentár­io. Alguém se anima?

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