Folha de S.Paulo

No Egito, não culpem o islã

- CLÓVIS ROSSI COLUNISTAS DA SEMANA: domingo: Clóvis Rossi, segunda: Mathias Alencastro, quinta: Clóvis Rossi

QUE ABDEL Fattah al-Sisi se reeleja nesta quarta-feira (28) como presidente do Egito não é propriamen­te surpresa. A eleição foi uma farsa completa, a ponto de se ter permitido apenas uma segunda candidatur­a, a de um fanático apoiador do ditador de turno.

A farsa foi denunciada pelos principais meios de comunicaçã­o ocidentais, mas engolida silenciosa­mente pelos governos de quase todos os países.

Pena que a mídia ocidental, com poucas exceções, não tenha apontado, à época, que a derrubada de um raro governo eleito democratic­amente no mundo muçulmano, o de Mohamed Mursi, significav­a a instalação de uma ditadura.

Cinco anos depois, não adianta denunciar uma farsa eleitoral que apenas trata de passar um verniz muito sem vergonha na ditadura.

O problema de Mursi, o presidente derrubado, era simples: pertencia leis canônicas islâmicas previsto nos livros sagrados do islamismo.

Sou radicalmen­te contra misturar religião e política, mas vetar liminarmen­te a Irmandade Muçulmana é desconhece­r o contexto que a levou ao (efêmero) poder.

Primeiro fato: o grupo islamita era contra a ditadura anterior (a de Hosni Mubarak). Quando houve a revolta popular, inserida em um movimento que ficou conhecido como Primavera Árabe, a ditadura caiu, grupos que a ela se opuseram.

É um movimento pendular que ocorre em inúmeros países.

Segundo fato: a Irmandade Muçulmana, fundada em 1929, construiu ao longo dos anos uma rede assistenci­alista que amparou uma enorme quantidade de egípcios deixados de lado por governos ou ineptos ou corruptos.

Essa foi a catapulta eleitoral que levou Mursi ao poder, muito mais do algumas medidas que indicavam tendências autoritári­as, mas, vistas agora, após a ascensão de Sisi, são comparativ­amente insignific­antes.

A ditadura que se consolida com a eleição encerrada nesta quartafeir­a “transforma Sisi talvez no mais controlado­r líder na história moderna do Egito”, escreveram para The Washington Post Sudarsan Raghavan e Heba Farouk Mahfouz.

Uma história que teve Gamal Abdel Nasser, Anwar al-Sadat e Hosni Mubarak é uma história de ditadores. Colocar Sisi no alto do pódio conta tudo sobre a violência de seu regime.

O retorno do Egito às trevas, após Rachid Ghanouchi, se diz “muçulmano democrata”, e um reconhecid­o colunista do Financial Times, Gideon Rachman, escreve que “os otimistas esperam que a Tunísia possa servir como modelo para o resto do norte da África e do Oriente Médio”.

Pena que, no Egito, os otimistas tenham perdido.

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