Folha de S.Paulo

O minete e a língua

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; SÉRGIO RODRIGUES terça: Vera Iaconelli; quarta: Ilona Szabó de Carvalho; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

ESTÁVAMOS NA vila medieval de Óbidos, em Portugal, terra da ginja, para participar de um festival literário. Na roda formada por homens e mulheres de nacionalid­ades lusófonas diversas, o escritor angolano José Eduardo Agualusa resolveu pegar no pé de uma lacuna vocabular brasileira.

“No Brasil não existe minete”, declarou, para espanto e indignação da ala feminina do grupo. Embora conste que em certas regiões do país a palavra não seja desconheci­da, Agualusa tinha lá sua razão, como comprova o fato de que poucos leitores desta coluna saberão o que vem a ser o tal minete.

A confusão proposital entre a palavra, que de fato não existe para a maioria dos nascidos aqui, com a coisa, que tem existência vibrante para muita gente, era parte da piada. Uma piada que exigia resposta rápida do único brasileiro presente, ou seja, eu. Estava em jogo nada menos que a dignidade versão simbólica de jogo de salão. minete, um substantiv­o que, naquele momento, eu mesmo acabava de conhecer. Chega de preliminar­es: minete é sexo oral em mulheres. O contrapont­o feminino do boquete.

Em português brasileiro, um silêncio, uma lacuna que a gozação de Agualusa diante da plateia escandaliz­ada tornava constrange­dora. Quando não uma lacuna, no máximo um daqueles substantiv­os informais feitos na marra com o Mas isso não livraria nossa cara coletiva naquela hora.

Por que, afinal, não temos um substantiv­o bom e honesto para nomear ato tão relevante? Logo nós, com nossa fama —não inteiramen­te justa, mas insuflada por décadas de campanhas turísticas oficiais— de povo liberadão e de sexualidad­e à flor da pele.

Não será verdade que a exuberânci­a vocabular sempre acompanha o peso cultural das coisas, como sugerem os incontávei­s nomes que a cachaça acumula país afora? Se for verdade, o que essa fenda pudica em nosso vocabulári­o revela? termos importado “minete”?

Seria uma mentira cômica dizer que, sendo um povo erudito, “cunnilingu­s” resolve a questão para nós. Além de ser pedante, feioso e de uso raro, o termo latino tem sonoridade que pode provocar certos mal-entendidos anatômicos.

Tudo ao contrário de “minete”, um vocábulo simpático e tão popular em Portugal quanto na África lusófona. Vem do francês “minet”, ou mais provavelme­nte de seu feminino, “minette”. Quer dizer gatinho ou gatinha e tem sentido lúbrico por associação óbvia com a lambeção apreciada pelos bichanos.

Caros compatriot­as: naquele momento difícil, eu precisava de uma iluminação divina, nada menos que isso, e tenho o prazer de relatar que ela veio. Ponderei à pequena audiência lusófona multinacio­nal que nem sempre

Às vezes é o contrário: por respeitar demais alguma coisa, por nos sabermos pequenos e indignos diante de sua grandeza, nos recusamos a reduzi-la a um nome. “Vejam o caso de Deus. YHWH, o impronunci­ável tetragrama hebraico, é um exemplo.” Não sei se colou. Fez o pessoal rir, e isso bastava.

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