Folha de S.Paulo

CINEMA/DRAMA ‘Stromboli’ rechaça a tarefa de entreter e visa transforma­r o homem

Longa fez Ingrid Bergman, uma das mais requisitad­as em Hollywood, deixar os EUA pelo papel de refugiada

- INÁCIO ARAUJO

FOLHA

Ingrid Bergman deixou Hollywood perplexa quando, no auge de sua carreira, decidiu deixar a América para trás e ir até a Itália para filmar com Roberto Rossellini. O neorrealis­mo italiano era, afinal, o assunto do momento desde o sucesso internacio­nal de “Roma, Cidade Aberta”.

Qualquer um, aliás, ficaria um tanto espantado com essa decisão: Bergman podia fazer o papel que quisesse, ganhava milhões e era paparicada por meio mundo. Em vez disso foi fazer em “Stromboli” uma refugiada lituana que, depois de passar por meia Europa escapando dos nazistas, chega à Itália.

No fim da guerra, como quase todo mundo ignora, pouca gente estava em seu lugar na arruinada Europa. Por toda parte havia refugiados. E é lá que Karin (Ingrid) vai parar depois de ter seu visto de entrada recusado pela Argentina.

Campo de refugiados não era campo de concentraç­ão, mas não era tão melhor assim. Karin vive com outras refugiadas e não vê futuro para si, uma apátrida, até que um ex-soldado italiano, do outro lado do arame farpado, começa a fazer-lhe a corte.

Antonio é seu nome, e ele se impression­a com Karin. Propõe-lhe casamento. Karin não vê aquilo com bons olhos: como casar com alguém a quem nem conhece?

Logo ela mudará de ideia: melhor Antonio, pensa, do que ficar sabe Deus até quando morgando naquele campo. Ledo engano.

Uma das sequências mais impression­antes do filme, aliás, consiste na chegada a Stromboli. É quando Karin se dá conta de que seu destino está ligado a uma ilha vulcânica, uma espécie de deserto de pedra, quase inabilitad­o. E seus poucos habitantes são pessoas tão simples quanto o marido, um pescador.

A partir daí Karin viverá uma experiênci­a espiritual difícil de descrever, por dois motivos. Sempre haverá quem veja nisso uma espécie de estraga-prazer —essa é a razão superficia­l. A outra, mais profunda, diz respeito à natureza da transforma­ção pela qual Karin passará —e onde se encontrará a beleza mais fundamenta­l deste filme.

Pode-se dar, no entanto, uma pista: Rossellini era profundame­nte católico. E, ao mesmo tempo, fazer uma advertênci­a: tinha uma fé imensa no cinema e em sua convicção central; cinema não é entretenim­ento, muito menos espetáculo. É um instrument­o de transforma­ção do homem.

Talvez sua atitude explique melhor o que é “Stromboli” do que um longo arrazoado a respeito. Pouco tempo depois da filmagem, já tendo casado com Ingrid Bergman, Hollywood ofereceu milhões para que se mudasse para os EUA (queriam Ingrid de volta, na verdade, não ele). Rossellini foi.

Leu o contrato. Bateu os olhos na cláusula em que, segundo a tradição dos estúdios, não teria direito à montagem do filme. Não teve duvidas: comprou passagem no primeiro avião de volta para a Itália e nunca mais voltou a falar com esses produtores.

Essa pequena história ilustra bem o que tem “Stromboli” de belo, de irredutíve­l, mas também de árido. Um filme enorme. (IDEM) DIREÇÃO Roberto Rossellini ELENCO Ingrid Bergman, Mario Vitale, Renzo Cesana PRODUÇÃO Itália, 1950, 12 anos QUANDO reestreia nesta quinta (29) AVALIAÇÃO ótimo

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Divulgação A atriz Ingrid Bergman interpreta Karin no filme do diretor italiano Roberto Rossellini

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