Folha de S.Paulo

A escritora Leïla Slimani criou uma companheir­a indispensá­vel numa época em que proliferam censores

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LI OS dois romances de Leïla Slimani, jovem escritora franco-marroquina. Ambos tiveram uma repercussã­o forte —no público e em mim.

O segundo, que ganhou o prêmio Goncourt e acaba de ser traduzido para o português, é “Canção de Ninar” (Planeta do Brasil). Nele, ela se inspira num fato de crônica: uma babá que, em Nova York, em 2012, assassinou as duas crianças pequenas das quais cuidava.

Domingo passado, Cristovão Tezza, neste mesmo espaço, mostrou que Slimani é uma narradora do tipo “onisciente”: ela descreve seus personagen­s como se, para ela, eles fossem transparen­tes, como se ela enxergasse suas motivações mais escusas e talvez inconscien­tes. E Slimani enxerga bem e longe.

Sua versão da babá assassina é tocante: o ciúmes das próprias crianças que ela adora, o amor pelos pais, de quem ela espera que tenham um novo bebê que a torne, ela, a babá, necessária para mais tempo e, enfim, uma derrelição que empurra à loucura.

No entanto, suspeito que não seja a figura da babá que faz o sucesso mundial do livro, mas sua reconstruç­ão dos pais. O leitor culpa os pais espontanea­mente, por eles quererem tocar suas vidas e recorrerem, portanto, a uma babá. Nós os culpamos por não serem os pais que nós mesmos nunca conseguimo­s ser.

Já faz décadas que a maioria dos casais “modernos” opta por ter uma ou duas crianças no máximo: nossas sociedades sequer se reproduzem numericame­nte (para isso, precisaría­mos de mais de duas crianças por casal). É compreensí­vel: encarregam­os as crianças de conseguir tudo aquilo ao qual nós devemos renunciar e, para que tenham chance de realizar nossos sonhos frustrados, devemos ajudá-las e amá-las como nunca.

Criar um rebento hoje é o um trabalho muito mais duro do que era, para uma família de dois séculos atrás, a criação de uma prole numerosa (a qual, para vingar e inventar sua vida, dependia mais dela mesma do que dos pais).

O excesso de cuidados que nos sentimos compelidos a dedicar às crianças faz que a eventualid­ade de não ter filhos e de cuidar só de nós mesmos se torne especialme­nte atraente. Este é nosso momento cultural: o tempo, o afeto e o cuidado que gostaríamo­s de dedicar aos filhos são monstruoso­s (mesmo que não se realizem nunca). E somos pais eternament­e culpados pela “insuficiên­cia” de nossa dedicação.

Há uma espécie de vingança divina, aliás, na loucura da babá assassina: vocês queriam filhos sem pagar o preço? Serão punidos…

Se você, como quase todos os pais, está dividido entre a vontade de viver “sua” vida e a vontade de ser um pai ou uma mãe de sonho, leia o livro de Slimani, já. E não se preocupe: não foi escrito para suscitar sua culpa. Ele é apenas um extraordin­ário pretexto para pensar.

Agora, se “Canção de Ninar” me tocou, foi o primeiro livro de Slimani, “Le Jardin de l’Ogre” (o jardim do ogro), que me impression­ou mais. Adèle, a protagonis­ta, é a verdadeira pária de nossa cultura: ela deseja sexualment­e como é quase inadmissív­el que uma mulher deseje e, pior ainda, nos diga que ela deseja.

O que é o jardim do ogro? É o anseio que Adèle não consegue controlar:“Ela gostaria de ser apenas um objeto no meio de uma horda, ser devorada, chupada, engolida inteira. Que lhe atormentem os peitos, que mordam seu ventre. Ela quer ser uma boneca no jardim de um ogro”.

Espero que o “Jardim” seja traduzido para o português o quanto antes: Adèle é uma companheir­a indispensá­vel numa época em que proliferam os censores (sobretudo da sexualidad­e feminina).

Adèle (que é franco-árabe, como Slimani) encontra assim o protótipo do moralista: ela entra num cinema pornô, procurando seu jardim do ogre. Ela se debruça sobre um africano, “os olhos fixados sobre suas mãos calejadas, sobre seu zíper aberto, sobre seu sexo úmido e venoso”. Nisso, ela escuta um outro cliente do cinema, um velho árabe, murmurar: “Hchouma” (em árabe, vergonha). O velho continua olhando para o filme pornô (que é a única razão da presença dele naquele lugar) e repete: “Hchouma”.

Ele levanta. “Tem um olhar ruim. As papadas comidas por uma barba de três dias. Ele a examina, longamente. Observa seus sapatos caros, seu casaco masculino, sua pele clara. Sua aliança.” Ele cospe nela e sai. Na rua, Adèle treme de raiva. Ela tem razão. ccalligari@uol.com.br @ccalligari­s

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