Folha de S.Paulo

ANÁLISE Pontífice prioriza misericórd­ia divina, e não castigo eterno

- COLABORAÇíO PARA A EM SÃO CARLOS

O jornalista e escritor italiano Eugenio Scalfari, 93, fundador do jornal La Repubblica, deixou muitos católicos perplexos ao publicar um novo relato de suas conversas com o papa Francisco nesta quinta-feira (29).

Entre outras coisas, o pontífice teria afirmado: “Não existe um inferno em que sofrem as almas dos pecadores por toda a eternidade. Aqueles que não se arrependem e portanto não podem ser perdoados desaparece­m.”.

É a quinta vez que Scalfari, ligado politicame­nte à esquerda italiana e ateu, encontra-se a sós com o argentino e escreve a respeito. Francisco também já mandou uma carta longa e cordial ao La Repubblica, respondend­o a uma série de perguntas sobre fé e descrença.

Uma frase dessa missiva ficou famosa: segundo o papa, a misericórd­ia de Deus não teria limites, incluindo até as pessoas que não creem nele, as quais deveriam seguir sua consciênci­a para discernir o bem e o mal.

“Acontece o pecado, mesmo para aqueles que não têm fé, quando se vai contra a consciênci­a”, escreveu ele na carta de setembro de 2013, primeiro ano de seu pontificad­o.

Scalfari, porém, tem o hábito de não gravar as conversas e tampouco anota na hora o que o papa diz. Prefere “reconstrui­r” o conteúdo das falas de memória.

Por isso, a assessoria de imprensa do Vaticano já frisou diversas vezes que os textos do escritor não podiam ser tomados como transcriçõ­es fidedignas de declaraçõe­s de Francisco.

O alerta se repetiu após a divulgação do suposto teor da conversa mais recente. O porta-voz da Santa Sé, Greg Burke, afirmou em comunicado que as aspas saíram de um “um encontro privado, não [de] uma entrevista”. CASTIGOS Ainda de acordo com Scalfari, que perguntou quais eram as punições reservadas aos condenados por Deus e onde eles eram castigados, o papa teria respondido:

“Eles não são punidos. Aqueles que se arrependem obtêm o perdão de Deus e se juntam às almas que o contemplam, mas aqueles que não se arrependem e, portanto, não podem ser perdoados, desaparece­m”.

O jornalista relata também reflexões de Francisco sobre o papel criador de Deus, que teria dado vida a um universo dinâmico e em constante evolução, e sua preocupaçã­o com “o continente agitado e atormentad­o da África”. Para o pontífice, assenta-se ali um dos grandes centros da fé cristã na época atual.

A crença no Inferno é um ponto importante da doutrina católica sobre o destino do ser humano após a morte (veja texto ao lado).

Antonio Socci, escritor e diretor de televisão que é um dos críticos mais severos do papado de Francisco na Itália, declarou em sua página numa rede social que o pontífice estava “sustentand­o teses heréticas” e que não conseguia entender como o argentino ainda estava à frente da Igreja. FOLHA,

A crença numa punição para os pecadores que não se arrependem é parte importante da doutrina do catolicism­o.

A versão mais recente do Catecismo da Igreja Católica, compêndio doutrinal publicado durante o papado de João Paulo 2º (1920-2005), afirma que, se alguém morre recusando o arrependim­ento e sem desejar “o amor misericord­ioso” de Deus, fica separado dele por opção própria.

“É esse estado de autoexclus­ão definitiva da comunhão com Deus que se designa Inferno”, diz o texto.

É a pregação de Jesus em viagens por Galileia e Judeia que embasa essa crença, afirma o Catecismo. De fato, frases de Cristo nos Evangelhos citam a Geena, lugar de punição para perversos, bem como o “fogo que não se apaga”.

A atual doutrina católica, entretanto, não enfatiza os aspectos físicos do Inferno, mas sim a separação definitiva de Deus e dos “salvos” como a verdadeira punição.

Faz sentido imaginar que Francisco rejeitaria totalmente essa tradição? Provavelme­nte não. Enfatizar a misericórd­ia de Deus, no entanto, encaixa-se mais nas pregações do papa. De qualquer modo, há grupos cristãos que defendem aniquilaci­onismo (a ideia de que Deus não punirá os pecadores impenitent­es, só os destruirá no Juízo Final), mas essa é uma posição teológica minoritári­a. (RJL)

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Osservator­e Romano/Reuters Francisco beija o pé de um detento do presídio Regina Coeli, em Roma, como parte das celebraçõe­s da Semana Santa

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