Folha de S.Paulo

LIVROS/QUADRINHOS HQ exigente faz Twin Peaks parecer cidadezinh­a normal

‘Diastrofis­mo Humano’ se passa em lugar imaginário que fez autor ser comparado a Gabriel García Márquez

- ÉRICO ASSIS

FOLHA

Maria é a que concorria em concursos de beleza, que se casou com um gângster, que às vezes sente que um fantasma bate na sua cabeça com uma pá e que é mãe de Luba.

Humberto é o garoto de olhos doidos que se deslumbra ao descobrir livros de história da arte e resolve esculpir os habitantes de Palomar —esculturas que depois joga no rio.

Casimira é a garotinha que perdeu o braço e usa a prótese de porrete ou tocha. Doralís, outra filha de Luba, vira paquita de programa infantil. Angel é o ex-presidiári­o.

Em “Diastrofis­mo Humano”, segunda coletânea portentosa dos quadrinhos de Gilbert Hernandez, o leitor tem desculpa para se perder entre tantos, tantos personagen­s e suas vidas. Aparenteme­nte, é intenciona­l.

Hernandez já tinha ouvido todas as comparaçõe­s entre o realismo fantástico de sua fictícia Palomar e “Cem Anos de Solidão”, ou com as telenovela­s mexicanas. Aí, parece que resolveu ligar o turbo: o elenco dobrou, os saltos para passado e futuro aceleraram e, para entender um fio da trama, às vezes você tem que ter em mente cenas aparenteme­nte desproposi­tadas de cem páginas ou na coletânea anterior do autor.

Iniciadas no começo dos anos 1980, as histórias de Palomar saíam em capítulos na revista Love & Rockets, marco do quadrinho indie criada por Gilbert e seus irmãos. As histórias de “Diastrofis­mo” são do auge da revista.

Há diferenças fortes entre as duas metades do novo volume. Na primeira, a trama com um assassino serial na cidadezinh­a mexicana tenta alinhavar vários desenvolvi­mentos na vida dos personagen­s.

Essa trama maior, porém, lembra um guarda-chuva pelo qual pingam subtramas que não parecem tão sub. O que Hernandez quer mesmo é ficar contando draminhas cotidianos.

Chega a ser irônico: os palomarino­s quase ignoram a ameaça do assassino, pois estão mais ligados em sexo, babosas fritas (espécie de lesma que se come na cidade), brigas de família. O leitor também é levado a curtir mais esses momentos.

Já a segunda metade, a partir de “Adeus, Minha Palomar”, é a da super-rotação. Hernandez não só despeja avanços na vida das personagen­s ou conta suas origens. Faz isso com mudanças de cena constantes e saltos temporais que exigem concentraç­ão do leitor.

Se nos quadrinhos mais comuns você se guia nessas transições pelas cores ou pela virada de página, aqui o autor consciente­mente nega esses artifícios ao leitor e exige atenção total. Colas com o nome dos personagen­s e uma descrição rápida, no início e no final do volume, ajudam um pouco. Só um pouco.

Misture ainda os elementos sobrenatur­ais, a sexualidad­e (de todas as cores) à mostra, os comentário­s sobre política, racismo, sexismo, maternidad­e, fronteiras e paixões avassalado­ras que, perto de Palomar, Twin Peaks vira uma cidadezinh­a normal.

Tudo é pano de fundo para jornadas transforma­doras das personagen­s. O “diastrofis­mo” —a movimentaç­ão das placas tectônicas—, como diz o título, acontece em nível humano. Mas toma proporções reais na última história. AUTOR Gilbert Hernandez TRADUTORA Cris Siqueira EDITORA Veneta PREÇO R$ 89,90 (252 págs) AVALIAÇÃO bom

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