Folha de S.Paulo

O Facebook é o próprio navio pirata. Seu butim se baseia no livre mercado de dados de seus usuários

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EU SERIA um homem feio, muito feio. Foi a conclusão a que cheguei, logo após me engajar num aplicativo, aparenteme­nte inofensivo, que chegou a mim via Facebook.

Concordei com os termos de contrato sem lê-los, admito, e disponibil­izei uma foto para, em seguida, admirar a hedionda versão masculina de mim mesma. Não postei. Primeiro, porque não costumo dividir com os outros o meu tempo mal gasto em futilidade­s; segundo, pelo horror do resultado.

Graças ao passatempo imbecil, meu nome, hoje, deve constar do catálogo mafioso da Cambridge Analytica, arregiment­ado por meio de informaçõe­s pirateadas do Facebook. Caso a sujeira não tivesse vindo à tona, meu perfil corria o risco de contribuir, e talvez ainda corra, para a manipulaçã­o das eleições de outubro no Brasil.

O vídeo do Channel 4 em que o CEO da Cambridge Analytica, Alexander Nix, oferece seus serviços a um suposto interessad­o em ingressar na vida política do Sri Lanka é de vomitar de tão nojento. Nix sugere contratar prostituta­s para obter imagens difamatóri­as de possíveis concorrent­es e se vangloria das fake news. Não importa que sejam falsas, diz ele, contanto que as pessoas acreditem nelas.

Pressionad­o, o margarido Zuckerberg apareceu, com seu jeito de colegial do ensino médio que não possui bilhões na conta bancária, e pediu desculpas pelo maquiavéli­co uso de sua invenção.

A questão é que Aleksandr Kogan, o pesquisado­r que desenhou o modelo de prospecção de dados e o ofereceu para a Cambridge Analytica, não roubou as informaçõe­s.

Kogan esqueceu a ética, mas se valeu do Facebook Graph API, que o próprio Face utiliza e disponibil­iza para o uso comercial de informaçõe­s dos usuários.

O Face é o próprio navio pirata. E não só ele. O Google, o YouTube, o Instagram e o Twitter também são corsários não regulados. Seu butim se baseia no livre mercado de dados. A pirataria está na gênese da internet.

Ano passado, quando os haters ameaçaram de morte minha mãe, contatamos o escritório da empresa no Brasil. Na época, pediram que aguardásse­mos até janeiro, quando um novo algoritmo entraria em funcioname­nto, visando barrar a difamação e a cultura do ódio impregnada­s na rede.

Para minha surpresa, uma das principais mudanças anunciadas foi a de banir a influência da imprensa do Face.

A decisão se fundamenta­va no desejo de que a rede de relacionam­ento retornasse à pureza de sua origem, um lugar onde vovós saudosas compartilh­am os puns dos netinhos à distância.

Em vez de fortalecer a notícia apurada e regulament­ada, da qual se conhece a fonte e a linha editorial do veículo que a publica, o Facebook privilegia­va a fofoca e as fake news.

A decisão fez a Folha abandonar a sua página.

Em 2003, quando ainda estudava em Harvard, Zuckerberg lançou o Facemash, protoversã­o do Facebook, publicando fotos de estudantes para eleger os mais “quentes”.

A brincadeir­a atraiu milhares de participan­tes em poucas horas, até ser interditad­a pela direção da universida­de. Zuckerberg enfrentou, entre outras acusações, a de violação de privacidad­e, a mesma que encara agora, pela associação com a Cambridge Analytica.

Há algo de estranho numa empresa que permite a proliferaç­ão de perfis falsos, aconselhan­do o indivíduo lesado a criar uma página oficial a fim de combatê-los. Foi o que aconteceu comigo.

O Facebook sempre lavou as mãos, alegando ser apenas o veículo, e não o autor das injúrias, falsidades e difamações. Isso muda agora. Pela primeira vez, o próprio Zuckerberg fala em regulação.

Já não era sem tempo.

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Marta Mello

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