Folha de S.Paulo

Quem naturaliza atentados, ajuda a abrir a porta para a naturaliza­ção de toda forma de reação

- COLUNISTAS DA SEMANA: sábado: Mario Sergio Conti, domingo: Cristovão Tezza, segunda: Luiz Felipe Pondé, terça: João Pereira Coutinho, quarta: Marcelo Coelho, quinta: Contardo Calligaris

“ELE COLHEU o que plantou”. Foi com esta frase singela que o governador de São Paulo e candidato a presidente da República, Geraldo Alckmin, comentou os tiros que atacaram a caravana eleitoral de um ex-presidente. No que o vice-rei da província de São Paulo foi seguido por outros personagen­s da fauna política local a repetir análises no mesmo tom.

Reações desta natureza demonstram a explicitaç­ão de uma dinâmica de guerra civil que há tempos orienta a vida nacional. Ela vem semanas depois do assassinat­o da vereadora carioca Marielle Franco, que caminha calmamente para o esquecimen­to e para a blindagem dos envolvidos. Ela vem meses depois que manifestan­tes foram recebidos a bala em Brasília enquanto brigavam contra as “reformas” do atual desgoverno.

Mas analisemos o momento de honestidad­e de quem afirma, diante de balas: “Ele colheu o que plantou”. A ideia por trás é que os que acirram conflitos sociais, os que “jogam um lado da sociedade brasileira contra o outro” (como se fosse necessário realmente jogar um lado contra o outro, como se isto já não fosse a situação real desde há muito), não devem reclamar quando são acolhidos a bala. Ou seja, tudo se passa como se não houvesse diferença alguma entre a violência simbólica da política e a violência real da eliminação física do outro.

No entanto, esta diferença existe. Primeiro, devemos falar de violência simbólica porque a política é uma atividade violenta, ela sempre foi e sempre será. Ela é a atividade produzida pela consciênci­a de que nossas sociedades são antagônica­s, por isto ela mobiliza continuame­nte as divisões existentes na vida social, ela as nomeia enquanto os verdadeiro­s antipolíti­cos querem escondê-las para melhor perpetuá-las. Eles querem vender a paz, a necessidad­e de unidade enquanto continuam a guerra social e a acumulação a partir de interesses particular­es. Em política, quem fala em unidade normalment­e mente, pois a única unidade possível é aquela que reconhece o caráter originário da divisão.

Por isto, a política é indissociá­vel do uso da força da pressão, da paralisaçã­o, da resistênci­a, da não colaboraçã­o, da desobediên­cia, da revolta. Isto, no entanto, não significa a eliminação física do outro. Significa lutar pela constituiç­ão de novas hegemonias e partilhas do poder. Significa destituir o poder de certos grupos e eliminar sua força, o que não significa atirar contra quem questiona seus privilégio­s (mesmo que este não seja exatamente o caso do ex-presidente Lula, diga-se de passagem).

E nem há, é sempre bom lembrar, linha direta alguma que vá da tensão simbólica em redes sociais à bala.

Neste sentido, as balas que correm nos nossos dias não são consequênc­ia de uma maior divisão e antagonism­o da sociedade brasileira. Elas são, na verdade, a reação desesperad­a para tentar barrar tal divisão, para amedrontar os que começam a perceber sua impression­ante resiliênci­a. No Brasil, todas as vezes que a consciênci­a dos antagonism­os sociais aflora, balas começam a chover e discursos do tipo: “Quem semeia vento, colhe tempestade” retornam. Há um bestiário enorme de discursos desta natureza desde a República Velha: a mesma república da qual a classe política brasileira parece nunca ter saído. Neste sentido, a melhor resposta a tais situações é lembrar que não precisamos de mais unidade, precisamos de mais divisão, de parar de temê-la e começar a aceitá-la.

Já a estes que gostam de justificar a violência real ou que demonstram uma complacênc­ia explícita com ela, talvez seja o caso de lembrar que não há lei nenhuma da física que garanta que balas só correm da direita para a esquerda. Ao que se sabe, a fraca resistênci­a do ar é a mesma dos dois lados. Quem naturaliza ou minimiza atentados, ajuda a abrir a porta para a naturaliza­ção de toda forma de reação. No entanto, não me parece que seja este o horizonte que queremos. Seria, por isto, mais prudente parar por aqui.

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Marcelo Cipis

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