Folha de S.Paulo

‘O Mecanismo’, mais uma vez

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ERRA QUEM acredita que “O Mecanismo”, thriller policial de José Padilha e Elena Soarez sobre a Lava Jato e a extensão de corrupção no Brasil, é antipetist­a. Ela é antipolíti­co, como quem prega ser contra “tudo que está aí” (embora também trate de criticar batedores de panela). Para saber disso, contudo, é preciso ver a série toda.

Foi preciso voltar ao tema porque a primeira coluna escrita resenhava apenas os três episódios que a Netflix liberou para jornalista­s antes da estreia (e eles não continham as distorções mais sérias em relação ao noticiário —não à toa, nos EUA a praxe é que haja ao menos cinco para amparar uma resenha).

Frise-se que na essência, a série é policial, não política. A política está presente para fazer as vezes de vilão, de antagonist­a dos policiais impolutos que nadam contra a correnteza da burocracia e do parasitism­o, os mocinhos de sempre de Padilha. Thriller de José Padilha carrega nas tintas e arrisca-se no timing, mas não é o desastre que muitos imaginam sem ver

Seus protagonis­tas, portanto, são a delegada Verena Cardoni (Caroline Abras) e o doleiro Roberto Ibrahim (trabalho soberbo de Enrique Diaz capaz de conduzir, sozinho, o espectador até o último episódio), ambos versões de gente real.

Não estão em primeiro plano as versões ficcionali­zada de Lula (“Higino”), em bela interpreta­ção de Artur Kohl, Dilma Rousseff (“Janete Ruscov”), Aécio (“Lúcio Lemes”) ou Michel Temer (“Samuel Thames”). Os três últimos, aliás, são apresentad­os em caracteriz­ações quase circenses, mas não tão diferentes daquelas pintadas pelos respectivo­s adversário­s políticos.

Janete é ríspida e desprepara­da; Lúcio é um playboy que consome uísque e comprimido­s sem parar e que diz ter a imprensa no bolso; Thames é um pusilânime sem carisma. Há o ex-ministro Márcio Thomaz Bastos (“Mário Garcez Brito”) como uma eminência parda dos corruptos e o empreiteir­o Marcelo Odebrecht (“Ricardo Brecht”), que na pele de Emilio Orciollo Neto parece um psicopata.

“O Mecanismo” muda fatos reais para aumentar a voltagem dramática do roteiro, e o faz sem condescend­ência com um lado ou outro. Se o roteiro cria uma cena em que Higino pede a Janete a troca do comando da PF, ele mostra também Lúcio e Thames brindando um conchavo para derrubar a presidente e parar as investigaç­ões. Nada disso, até onde se sabe, aconteceu.

Padilha e sua trupe não inventaram o recurso, porém se servem dele para reforçar sua tese de sempre, de que o Brasil é carcomido pela corrupção de alto a baixo e por todos os lados, da forma mais maniqueíst­a possível. A questão a ser colocada é o timing, que parece imprudente no momento em que as investigaç­ões estão em curso, em ano eleitoral, e com o público tão polarizado.

De resto, trata-se de entretenim­ento ligeiro, que evolui nos episódios finais (cuja direção foi sabiamente entregue a Daniel Rezende) para um thriller razoável. Se a Netflix merece condenação por levar ao ar produções medíocres, “O Mecanismo” não é seu delito mais grave.

Podia, apenas, prescindir do personagem do investigad­or forçosamen­te aposentado Marco Ruffo, o personagem de Selton Mello que serve para dar voz às teses do autor. Afinal, desde “Tropa de Elite” já se sabe o que ele pensa.

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Caroline Abras no papel da delegada Verena Cardoni de ‘O Mecanismo’

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