Folha de S.Paulo

Colonialis­mo do livro se torna um enigma artístico no filme

‘2001’ se mostra fiel ao dever do cinema de mostrar, não explicar ou debater

- OTAVIO FRIAS FILHO

Parceiro de Kubrick no roteiro, Arthur C. Clarke discorre em seu romance sobre hipóteses como a fusão mente-máquina

A cena faz parte do folclore da astrofísic­a. Em algum dia de 1950, o físico ítalo-americano Enrico Fermi caminhava com colegas rumo à cantina das instalaçõe­s secretas de Los Alamos, no Novo México, o laboratóri­o dos Estados Unidos para a construção de armas nucleares.

Comentava-se uma charge de jornal em que um discovoado­r (houve um surto de aparições naquele ano) levava embora as lixeiras que vinham sumindo de noite em Nova York. Alguém na roda perguntou qual seria a chance de a Terra ser visitada por uma civilizaçã­o alienígena.

Já sentados à mesa, Fermi apanhou um guardanapo de papel e passou a rabiscar cálculos. Ele era conhecido por fazer estimativa­s, por exemplo, de quantos grãos de areia existem numa praia de dadas dimensões. De repente, parou de rabiscar e exclamou sua famosa pergunta: “Onde eles estão?” (“Where are they?”)

Não era difícil entender a conclusão de Fermi. Há centenas de bilhões de estrelas na nossa galáxia, a Via Láctea. E há centenas de bilhões de galáxias conhecidas. Por ínfima que fosse a proporção de planetas em redor dessas estrelas capazes de sustentar vida como a temos na Terra, ainda assim correspond­eria a um número muito grande.

Mais do que isso, o universo existe há 13,8 bilhões de anos. A Terra existe há apenas 4,5 bilhões de anos (suas primeiras bactérias surgiram há 3,8 bilhões e os primeiros organismos multicelul­ares, há 2,8 bilhões).

Num universo com o triplo da idade da Terra, já houve tempo suficiente para que o acontecido aqui em termos de evolução natural tenha acontecido também e antes em inúmeros outros planetas. Por que não temos sinal de nenhuma espécie tecnológic­a como a nossa?

Até março deste ano, foram identifica­dos 3.700 planetas girando ao redor de estrelas. De cada cinco estrelas semelhante­s ao Sol, uma tem um planeta orbitando sua zona habitável (distância em relação à estrela na qual seria viável água líquida, base para a vida tal como a definimos). Mantida essa proporção, haveria 11 bilhões de Terras na Via Láctea. “Onde eles estão?”

Surgiram hipóteses para explicar o paradoxo de Fermi. Uma delas sustenta que a Terra reúne condições muito mais raras do que parece. Seus campos magnéticos, sua Lua e até mesmo a proximidad­e relativa de um gigante como Júpiter formariam uma conjunção especialís­sima a garantir estabilida­de no planeta e proteção contra a radiação e impactos causados por bólidos vindos de fora.

Outra hipótese postula que é impossível superar as imensas distâncias implicadas em comunicaçã­o ou viagens interestel­ares e que espécies tecnológic­as talvez sejam incapazes de se eternizar.

É preciso ter em mente não só os abismos incomensur­áveis do espaço sideral, mas também os do tempo. A nossa espécie, por exemplo, tem apenas 200 mil anos, mero instante num universo em que o tempo se conta em centenas de milhões de anos.

A mais imaginativ­a dessas hipóteses sugere, porém, que essas civilizaçõ­es existem, mas se mantêm incógnitas, procurando não intervir, mais ou menos como faríamos em relação a uma reserva natural.

Arthur C. Clarke (19172008), o escritor inglês de ficção científica, foi um pioneiro ao cultivar a ideia e levá-la adiante: seus misterioso­s alienígena­s são jardineiro­s diligentes, que escolhem espécies promissora­s pela galáxia afora a fim de introduzir em seus genomas alterações que as façam dar saltos no que seria uma escada evolutiva.

Num conto escrito em 1948, “A Sentinela”, Clarke já imaginava astronauta­s que descobrem, ao explorar a Lua, uma pirâmide brilhante colocada ali por uma civilizaçã­o que visitara a Terra havia muitas eras, pronta a disparar um sinal quando encontrada por alguém que chegasse ao satélite.

Noutra história, “Encontro no Alvorecer”, enviados de uma civilizaçã­o alienígena visitam a Terra nos primórdios da espécie humana para introduzir mutações que propiciem a descoberta do uso de instrument­os.

O espectador de “2001 – Uma Odisseia no Espaço” reconhece nessas histórias o rascunho do roteiro, concebido em parceria com Stanley Kubrick numa colaboraçã­o que se estendeu de 1964 até a estreia do filme, em abril de 1968.

O diretor procurava uma história que rendesse um bom filme de ficção científica e fez um dos melhores filmes de todos os tempos. Mas Clarke, em paralelo ao roteiro, escrevia um romance, lançado com o mesmo título três meses depois.

Romance e filme são muito parecidos. A terceira parte da história, dominada pelo motim do computador HAL (Clarke sempre negou que as iniciais fossem as letras que precedem IBM no alfabeto) contra seus criadores humanos, é desenvolvi­da em detalhes no livro. Hipóteses hoje em voga, como a fusão entre mente e máquina ou a superação da inteligênc­ia orgânica pela artificial, são longamente discutidas pelo autor.

Aos olhos de hoje, há muito de colonialis­mo nessas espécies avançadas que saem por aí “melhorando” as outras e algo de simplório no pressupost­o de que a evolução natural seria uma escada rumo a algum ápice. Mas o livro é vítima de sua própria tagarelice e do hábito do autor de tornar tudo explícito. O oposto do que acontece no filme.

As explicaçõe­s no cinema foram reduzidas ao mínimo. Trata-se de um filme com pouquíssim­o diálogo, dominado pelo “silêncio eterno dos espaços infinitos” que assustava Pascal. O dever do cinema é mostrar, não explicar ou debater.

Fiel a essa prescrição, “2001” continua, 50 anos depois, quase tão surpreende­nte quanto na estreia, fechado em sua solidão, negando-se a entregar seus enigmas tanto nas longas passagens de melancolia sideral, como nas transições triunfais, movidas à base da música nietzschia­na de Richard Strauss, de uma era a outra.

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