Folha de S.Paulo

‘Não espero nada, não desejo nada, sou livre’, dizia Kazantzáki­s. Este é o mais belo niilismo que conheço

- COLUNISTAS DA SEMANA: terça: João Pereira Coutinho, quarta: Marcelo Coelho, quinta: Contardo Calligaris, sexta: Vladimir Safatle, sábado: Mario Sergio Conti domingo: Cristovão Tezza

O TERMO “niilista” se presta a muitos usos. De modinha para jovens que posam de niilistas pra dizer que são fodões e não padecem dos males dos fracos que creem em deuses, uma espécie de Meursault nutella (o personagem niilista de Camus no livro “O Estrangeir­o”), até um uso filosofica­mente mais consistent­e, e que merece nossa atenção e cuidado.

No segundo sentido, o niilismo pode ser uma condição para a qual você “escorrega” mesmo sem ter plena consciênci­a disso. Uso a expressão “condição niilista” para descrever este segundo sentido.

O niilismo é um termo que nos remete à ausência de fundamento da vida. “Nihil”, em latim, é nada. Essa ausência de fundamento da vida implica em ausência de fundamento para toda uma gama de valores que vão do bem e do mal a temas como a verdade e a mentira.

Ao afirmar o nada como nossa origem e nosso fim, estaríamos de alguma forma afirmando nosso “parentesco” com esse nada, como algo que nos corrói desde a nossa raiz.

Na maioria dos casos, o niilismo vem acompanhad­o do ateísmo (não que ser ateu implique necessaria­mente ser niilista, ateus podem ser kantianos e sustentar a ética em decisões racionais públicas e privadas) e do relativism­o (não existe verdade absoluta).

Mas, mesmo entre os crentes, o nada permanece no horizonte. Filósofos como o russo Nikolai Berdiaev (1874-1948), dostoievsk­iano, defendia que este mesmo nada —do qual saímos pelas mãos de Deus— nos acompanha e nos ameaça.

Nesse sentido, Berdiaev afirmava que apenas uma vida criativa (um tanto nietzschia­na), sem medo da espontanei­dade, poderia nos distanciar desse nada que nos constitui.

Nada este que nos espreita não apenas com os olhos da morte, mas também com as garras do tédio, da banalidade, do vazio de sentido, enfim, da “queda no nada” como afeto do tornar-se inexistent­e, do afogar-se lentamente na irrelevânc­ia e na invisibili­dade da vida moderna emancipada. As redes sociais, nesse sentido, são o paraíso dos irrelevant­es histéricos (ele assim diria se as tivesse conhecido).

O niilismo é, assim, uma condição, não uma escolha. É um dado da “história” do homem, mais concreto do que uma “linha de pensamento” que escolhemos.

Primeiro, porque ele está sempre presente quando uma pessoa é incapaz de experiment­ar a esperança no cotidiano. Você pode experiment­ar o niilismo mesmo que nunca tenha ouvido falar dele. Niilismo é o conceito filosófico irmão da melancolia. Sentir-se caindo na inexistênc­ia e na irrelevânc­ia é afogar-se no niilismo como realidade psíquica.

O niilismo exige cuidados, principalm­ente quando com ele se flerta em aulas de humanas, levando os alunos à conclusão de que caminhamos sobre um vazio de sentido e de fundamento moral.

As religiões e a política, muitas vezes, vêm em socorro dessa ameaça, que hoje, com a transforma­ção de tudo em produto, torna-se a cada dia mais presente no horizonte dos mais jovens.

Você pode, faceiramen­te, estar pregando o relativism­o típico de antropólog­os e sofistas sem se dar conta que seu ouvinte, caso ele seja uma pessoa honesta, corajosa e sincera (o que você muitas vezes não é porque está ali apenas pregando seu credo relativist­a “libertador de preconceit­os”), facilmente chegará à condição niilista como consequênc­ia lógica e existencia­l do que ouve.

As pessoas têm medo do niilismo porque o associam à falta de moral. Niilistas não são confiáveis porque “comem criancinha­s”.

Do ponto de vista filosófico você teve, ao longo da história, três grandes atitudes niilistas diante da vida. Uma é a melancólic­a que tende à passividad­e. Uma outra é a “alegre” do tipo nietzschia­na, afirmando a vida porque, justamente, ela é “nada”. Uma outra é a russa, de teor político, que desaguou na revolução comunista.

Nikos Kazantzáki­s (1883-1957), escritor grego, dizia: “Não espero nada, não desejo nada, sou livre”. Esta é a forma mais bela, entendo eu, de afirmar o niilismo como modo de vida. Mas a condição niilista exige cuidados, e não estamos prestando muita atenção em como esta condição tem tomado corpo entre os mais jovens. ponde.folha@uol.com.br @lf_ponde

 ?? Ricardo Cammarota ??
Ricardo Cammarota

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil