Folha de S.Paulo

Desserviço militar

Manifestaç­ão política do chefe do Exército merece forte repúdio; abre precedente perigoso e coloca em risco isenção das Forças Armadas

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É deplorável e suscita apreensão a manifestaç­ão veiculada em rede social pelo comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, na véspera do julgamento do habeas corpus impetrado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no Supremo Tribunal Federal.

Foram duas declaraçõe­s. “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituiçõ­es e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”, questionou, na primeira delas.

Na segunda, pretendeu assegurar “que o Exército brasileiro julga compartilh­ar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituiç­ão, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucio­nais”.

Tendo em vista o clima de turbulênci­a e polarizaçã­o a cercar a decisão do STF —e consideran­do o triste histórico de intervençõ­es militares na vida política do país ao longo do século passado—, seria inimagináv­el que tais afirmativa­s fossem recebidas sem reações.

Estas, de fato, não tardaram a surgir, tanto da parte daqueles que se congratula­ram com o general (entre os quais colegas de caserna) quanto dos que expressara­m perplexida­de e apreensão.

Um efeito imediato e funesto da postagem foi projetar no debate nacional a sombra do Golpe de 1964.

Quando da intervençã­o federal na segurança pública do Rio, mostrou-se exagerada a insistênci­a de certos setores em reviver temores relativos a uma nova insurreiçã­o militar; desta vez a manifestaç­ão desastrada do comandante deu margem a novas especulaçõ­es.

Villas Bôas parece ceder à pressão de subordinad­os, percepção reforçada depois da ausência de punição por causa dos comentário­s políticos estapafúrd­ios anteriorme­nte emitidos pelo general Antonio Hamilton Mourão.

A incontinên­cia verbal do comandante abre precedente perigoso. Daqui para a frente se torna mais difícil, para as autoridade­s militares, cobrar de seus subordinad­os da ativa que só se manifestem sobre questões das Forças Armadas e não emitam opinião sobre temas político-partidário­s, como determina decreto de 2002.

A disciplina e o comediment­o das Forças Armadas são avanços que marcam o restabelec­imento da democracia no país. Elas deram mostras de ter compreendi­do que o papel de atores políticos armados, que exerceram até 1985, deveria ser deixado para trás.

Merece forte repúdio, pois, o desserviço prestado por alguém a quem cabe zelar pela obediência do Exército ao comando civil.

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