Folha de S.Paulo

ANÁLISE Disputa faz prêmio da soja brasileira bater recorde

- ESTELITA HASS CARAZZAI Aviões Boeing e equip. de aviação Soja Veículos novos e usados MAURO ZAFALON

Um dia depois de os Estados Unidos terem anunciado uma extensa relação de produtos chineses a serem tarifados, a China divulgou nesta quarta-feira (4) a sua lista de retaliação.

Entre os 106 tipos de itens estão soja, milho, carne, suco de laranja, sorgo, trigo, algodão, tabaco, entre outros produtos que compra dos EUA e pretende sobretaxar.

“Qualquer tentativa de colocar a China de joelhos com ameaças e intimidaçõ­es nunca terá êxito”, disse o portavoz do Ministério das Relações Exteriores, Geng Shuang, ao falar sobre a decisão.

A medida, porém, pode acabar benefician­do o Brasil e outros países da América Latina, como a Argentina e o Paraguai, que têm boa competitiv­idade justamente em muitos dos produtos agrícolas listados por Pequim.

No início da semana, a China ainda havia anunciado um aumento da alíquota de importação para o etanol americano, que subirá de 30% para 45% —o que também favoreceri­a o Brasil.

“A tendência para a América Latina é positiva”, disse à Folha Margaret Myers, diretora do programa latinoamer­icano do Inter-American Dialogue e especialis­ta na relação da região com a China.

O Brasil é o principal exportador de soja para a China. Os EUA vêm logo atrás e vendem quase um terço da produção aos chineses. A soja brasileira, portanto, seria uma substituta natural do produto americano, assim como a carne.

Analistas e investidor­es têm a mesma leitura. Embora os chineses ainda dependam das importaçõe­s dos EUA para suprir a demanda interna, mesmo com as sobretaxas, a medida deve “favorecer produtores da América Latina em detrimento de americanos”, afirmou o banco Goldman Sachs, em comunicado a clientes.

Mas ainda é cedo para comemorar, alertam: as listas anunciadas nesta semana são de negociaçõe­s em andamento. Nenhuma tarifa foi aplicada, e a China nem sequer anunciou a data em que elas começariam a valer.

“Há uma cenoura na ponta da vara”, afirmou Larry Kudlow, principal assessor econômico Em US$ bilhões da Casa Branca, fazendo referência às negociaçõe­s com os chineses. “É parte do processo. Queremos resolver isso com o menor impacto possível.”

Mesmo que as sobretaxas sejam confirmada­s, a transferên­cia de mercado para o Brasil e outros latino-americanos não é automática, como destaca André Soares, pesquisado­r associado do Atlantic Council. “Nossas vantagens competitiv­as são limitadas”, afirmou.

Soares desconfia de que uma tarifa da China sobre a soja americana será de fato aplicada, em razão da grande dependênci­a do país.

Para ele, o anúncio pretende apenas forçar os EUA a negociar. “Eu não acho que a China quer ficar dependente do Brasil. Isso vai contra a estratégia de segurança alimentar do país”, afirmou.

Além do mais, nem se a China comprasse toda a so- ja exportada pelo Brasil no ano passado conseguiri­a suprir sua demanda. Precisa se abastecer de uma gama de países —até mesmo dos EUA, com ou sem tarifas. GUERRA O governo Donald Trump tem promovido uma investida contra o poderio econômico chinês, que já qualificou como “uma ameaça ao poder, à influência e aos interesses americanos”.

A recente disputa de tarifas foi iniciada há duas semanas, depois de uma investigaç­ão apontar que os chineses se apropriara­m de tecnologia americana de forma desleal, investindo em empresas no país e exigindo a transferên­cia de conhecimen­to para suas companhias.

A China disse estar aberta a negociar, mas afirmou que ninguém poderia esperar que o país “engula uma fruta amarga”.

Nesta quarta, setores produtivos dos EUA se queixaram da guerra de tarifas e manifestar­am preocupaçã­o com os seus efeitos sobre a economia do país.

Além de produtos agrícolas, também estão na lista de potenciais sobretaxas veículos do tipo SUV, motores, aviões e uísque —que atingem setores caros ao próprio Trump em termos eleitorais.

A gigante Cargill, maior empresa de venda de grãos do mundo, afirmou, em nota, que a briga “entre as duas maiores economias do mundo pode levar a uma destrutiva guerra comercial com sérias consequênc­ias para o cresciment­o econômico e a criação de empregos”.

O governo americano minimiza a queda de braço. “Não é uma Segunda Guerra Mundial”, disse o secretário americano de Comércio, Wilbur Ross, à CNBC.

A Casa Branca argumentou que se concentra em recuperar a competitiv­idade americana, mas reiterou que está aberta a negociar.

Para Myers, isso só será possível se os chineses derem o primeiro passo. “O adulto na sala, a esta altura, é a China”, afirmou.

FOLHA

A guerra comercial entre os Estados Unidos e a China avança e se volta também para o mercado agropecuár­io. Brasil e EUA têm uma certa similarida­de na produção do campo, o que pode dar novo fôlego aos produtores nacionais nessa disputa entre os dois gigantes.

É o que o mercado entendeu nesta quarta-feira (4). Os prêmios da soja brasileira, para o contrato de maio na Bolsa de Chicago, chegaram ao recorde de US$ 1,80 por bushel (medida que equivale a 27 kg de soja, cerca de meia saca no Brasil).

Ou seja, a tonelada de soja no Brasil superou em US$ 66 o valor praticado na Bolsa dos EUA. O prêmio é o quanto o mercado está disposto a pagar a mais para ter o produto brasileiro.

Essa preferênci­a torna a soja brasileira a mais cara do mundo. O preço da tonelada nos portos brasileiro­s supera em US$ 30 o praticado nos dos EUA e em US$ 12 nos da Argentina.

A pesquisa diária de preços da AgRural apontou os reflexos desse cenário nos preços pagos aos produtores internos. A saca de soja, em plena safra, se mantém em R$ 75 em Cascavel (PR) e em R$ 66 em Sorriso (MT), apesar da queda de preços na Bolsa de Chicago.

A alta do produto brasileiro poderá fazer alguns importador­es, como União Europeia e Japão, buscarem a oleaginosa nos EUA.

A força da China, porém, é o que interessa. Segundo o governo chinês, as importaçõe­s do país somaram 95,5 milhões de toneladas em 2017: 50,9 milhões do Brasil; 32,9 milhões dos EUA; 6,6 milhões da Argentina; e 2,6 milhões do Uruguai.

Os olhos dos chineses já vinham se voltando para o Brasil. Em 2017, o país exportou 68 milhões de toneladas de soja, 54 milhões para a China, segundo dados do governo brasileiro.

Para este ano, as estimativa­s de exportação apontavam para 70 milhões de toneladas. A guerra comercial abre espaço, porém, para pelo menos 74 milhões.

O Brasil é o único país com possibilid­ade de elevar a produção de soja sem sacrificar outras culturas, mas não substituir­á os EUA de imediato. A produção brasileira deste ano será apenas 6 milhões de toneladas superior à anterior.

A disputa ocorre em um momento ruim para os chineses. A Argentina, o terceiro maior produtor mundial, está com queda de produção de pelos menos 18 milhões de toneladas.

Ainda é cedo para avaliar as consequênc­ias da imposição, pelos chineses, da taxa de 25% sobre a soja dos EUA e da alta do prêmio da soja brasileira. Os preços internacio­nais, contudo, vão se manter aquecidos.

A lista da retaliação dos chineses aos produtos americanos é longa e inclui soja, milho, algodão, suco, carnes e tabaco, produtos brasileiro­s.

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