Folha de S.Paulo

Depois daquele minete

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; SÉRGIO RODRIGUES terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

ESCREVER É um ato de insensatez que multiplica leituras, desleitura­s, tresleitur­as e outras travessura­s. Eis sua mágica. Podemos dormir intranquil­os, certos de que o tédio do sentido único jamais se instalará no reino das palavras (e para isso nem é preciso tomar liberdades com elas, como fiz neste parágrafo).

A coluna da semana passada sobre o substantiv­o “minete” não pretendia ser mais do que uma crônica leve sobre determinad­a dissonânci­a, entre muitas, que a bem-vinda diversidad­e de uma língua presente em vários continente­s usa como tempero na comunicaçã­o entre seus falantes.

Naturalmen­te, consultei dicionário­s antes de afirmar que a palavra —com o sentido de “cunnilingu­s, sexo oral em mulheres”— é um pitéu vocabular que, embora goze de grande popularida­de em Portugal e na África, “de fato não existe para a maioria” dos brasileiro­s. Consultar dicionário­s é a parte que se descortina para além deles e desconfiar que “Aurélio” e “Houaiss”, ao classifica­r “minete” como brasileiri­smo, estão variando.

Talvez nem seja tão difícil, mas requer algum juízo, reconhecer também que a sugestão oferecida por nossos bravos lexicógraf­os para a ocasião, “cunilíngua”, é um latinismo artificial que não existe na língua das ruas, aquela que as pessoas falam de verdade. sua provocação marota de que os brasileiro­s ignoram o minete, optei por uma defesa em dois tempos. Alto lá, que o ato não ignoramos, pá! Mas temos uma boa palavra para nomeá-lo, substantiv­amente? Temos não.

Tudo indica que já tivemos, e que até o fim dos anos 1950 nosso país se incluía na confraria lusófona que reconhece o minete e os mineteiros como vocábulos tabuístico­s de truz. Caberia investigar por que isso mudou, se terá algo a ver com nosso machismo rampante ou é apenas de reações enfezadas ao texto brincalhão acabou revelando traços brasileiro­s pouco lisonjeiro­s que eu não planejava afrontar naquele momento: o apego cartorial a dicionário­s, como se eles detivessem a última palavra sobre toda discussão acerca da língua (detêm a primeira, de modo geral); e um orgulho patriótico mais sensível que planta dormideira.

Sendo assim, proponho um trato. Estou disposto a admitir que “minete” é um brasileiri­smo exportado com imenso sucesso para Portugal e África —e se por aqui poucos sabem o que significa, paciência. Prometo ainda usar com frequência e ajudar a difundir o elegante substantiv­o “cunilíngua”. Não me custa muito. Nosso país já está fraturado é ridículo e inadmissív­el que, numa grande empresa, o chefe da segurança se meta nas deliberaçõ­es do departamen­to jurídico, quem sabe de olho na cadeira do CEO. Isso, sim, deveria ferir profundame­nte o orgulho nacional.

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