Folha de S.Paulo

Será que (por virtude ou por necessidad­e) a Igreja está começando a considerar a ordenação de mulheres?

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ENTRANDO NA “Scuola di San Giorgio degli Schiavoni”, em Veneza, o primeiro quadro à esquerda representa São Jorge derrotando o dragão, por Vittore Carpaccio.

Reza a lenda que perto de uma cidade do norte da África havia um dragão. Para acalmá-lo, os habitantes lhe ofereciam duas ovelhas por dia e, quando faltaram as ovelhas, um jovem ou uma jovem e uma ovelha. Os jovens sacrificad­os eram sorteados, e chegou a vez da filha do rei. Jorge, que era soldado e passava por aí, prontifico­u-se para enfrentar o monstro.

A Scuola era pertíssimo da minha casa, e eu, criança, revia São Jorge e o dragão com frequência. Adorava a coragem daquela figura de armadura, que enfiava a lança na goela do bicho. No pano de fundo do enfrentame­nto, além da princesa, que esperava conhecer seu destino, havia os restos das “refeições” anteriores do dragão.

No meio do quadro, dividindo o espaço em dois, havia uma árvore curiosa: do lado direito, ela tinha folhas, enquanto, do lado esquerdo, ela parecia morta. Claro, o lado direito é o do bem, onde estão Jorge e, no fundo, a princesa; o lado esquerdo é o do mal, onde está o dragão.

Essa árvore metade do bem e metade do mal evoca obviamente a famosa árvore da ciência do bem e do mal, da qual nunca entendi direito por que Deus não queria que Adão e Eva comessem o fruto. E, como cada um sabe, Eva foi quem se atrapalhou.

Justamente, no quadro de Carpaccio, em baixo da árvore que divide o quadro, há os restos de uma das jovens que o dragão devorou. O baixoventr­e desse cadáver feminino se situa à esquerda da linha da árvore, ou seja, do lado do mal.

Nada de muito original: quando Carpaccio pintava, nos primeiros anos de 1500, era normal pensar que a mulher (Eva) fosse a fonte da tentação e do pecado, cúmplice do demônio, decididame­nte “do mal”.

A gente, aliás, poderia temer pela alma de São Jorge: se ele vencer o dragão, será que ganharia o amor da princesa? Se assim fosse, para os doutores da Igreja do seu tempo (Paulo, Tertuliano, Jerônimo, Agostinho), não só sua santidade mas também sua salvação básica seriam comprometi­das.

Por sorte, o terceiro quadro da série nos tranquiliz­a: Jorge recusa a princesa e, por ter liberado a cidade do dragão, pede só que o rei e a princesa se convertam ao cristianis­mo.

Pensei nessas histórias da minha infância quando fui rever, mais uma vez, os Carpaccios da “Scuola” de São Jorge ao sair da missa solene de Páscoa, na basílica de São Marco.

A homilia do patriarca, Francesco Moraglia, retomou os Evangelhos de Marco (16, 1-8) e de João (20, 1-18) para evocar o que aconteceu na manhã da primeira Páscoa.

Os evangelist­as narram que foram as mulheres que descobrira­m a tumba de Cristo vazia —as mesmas mulheres que, na vigília, “tinham observado com atenção o lugar onde Jesus estava sendo sepultado”. Segundo Marco, eram as três Marias: Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Maria Salomé.

Dos apóstolos, a homilia diz, “um dos 12 o traiu, outro o renegou, todos —salvo o mais jovem (João)— fugiram”.

Claro, os homens tinham uma desculpa: eles corriam riscos maiores se fossem identifica­dos como seguidores de Jesus. Enquanto as mulheres não seriam perseguida­s só por querer perfumar o corpo do Jesus com óleos, como era costume.

Mesmo assim, a homilia parecia concluir com a ideia de que as mulheres foram as mais fiéis a Cristo:

“Os eventos mais íntimos de Cristo —sua morte e sua ressurreiç­ão— colocam em evidência, com simplicida­de, a grandeza da mulher. Nossa sociedade, nossa cultura e mesmo nossa Igreja devem se deixar plasmar mais pelo Gênio feminino para descobrir-se mais ricas de verdadeira humanidade e do sentimento de Deus”.

Será que (por virtude ou por necessidad­e, tanto faz) a Igreja está começando a considerar a possibilid­ade de ordenar mulheres? Se isso acontecess­e, seria a revisão do mito (eternizado pelo Carpaccio) da mulher como extensão do demônio, tentadora e responsáve­l por quase tudo o que é mal (inclusive —e não é pouca coisa— por nossa mortalidad­e)?

Claro, seria (será?) um longo processo, um século ou mais, mas a Igreja talvez pudesse liderar uma extraordin­ária mudança cultural e colocar um fim ao período de 3.000 anos de ódio pelas mulheres em Ocidente —um período o qual ela mesma contribuiu a inaugurar e a alimentar.

É mais um sonho de Páscoa, não é? E Páscoa foi primeiro de abril… ccalligari@uol.com.br @ccalligari­s

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Mariza Dias Costa

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