Folha de S.Paulo

Não, São Paulo está doente. Os prefeitos administra­m São Paulo como se fosse um pronto-socorro,

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Se fosse um paciente, São Paulo seria obesa por crescer mais do que o esqueleto é capaz de suportar, teria bronquite crônica, resultado de anos de inalação de ar poluído, e insuficiên­cia renal, por ser incapaz de excretar resíduos de forma adequada.

O diagnóstic­o é do médico Paulo Saldiva, 63, professor da Faculdade de Medicina da USP que acaba de lançar o livro “Vida Urbana e Saúde”.

Como patologist­a, pesquisa os efeitos do viver em São Paulo no interior dos corpos dos moradores. Como asmático, dedica-se especialme­nte às consequênc­ias da poluição do ar sobre os pulmões.

Um dos estudos que está em curso indica, por exemplo, que o morador de São Paulo fuma um cigarro a cada duas horas que passa no tráfego. “Quanto mais tempo permanecem­os presos no tráfego, mais poluentes inalamos”, afirma o médico. Folha - O sr. diagnostic­a várias doenças que afetam São Paulo, como obesidade, bronquite crônica, hemorragia, insuficiên­cia renal e cardiorres­piratória. A cidade está morrendo?

Paulo Saldiva - não têm tempo nem vontade de fazer um tratamento de base, educar sobre alimentaçã­o, modificar hábitos e cultura. Só quando entra em colapso algum sistema é que se vai fazer alguma coisa para reverter. Assim como o médico deve pensar na saúde dos seus pacientes, e não apenas tratar determinad­a doença, uma cidade saudável é aquela em que seus cidadãos têm qualidade de vida. O sr. diz que o uso diário do transporte público reverte na perda de um quilo por mês. Isso não deveria ser usado pelas campanhas públicas?

Sim, sem dúvida. Se tivéssemos um transporte público mais civilizado, as pessoas caminharia­m até a estação, teríamos mais fluidez no trânsito. Você teria mais horas de sono, chances de ler. Na Inglaterra, as pessoas moram a uma hora e meia de Londres e vão para lá de trem. Como tem wifi, as O PASSADO remoto do Brasil não é mais como era antigament­e. Devemos uma parte consideráv­el dessa transforma­ção sobre o que achávamos que sabíamos a respeito de nossa pré-história a uma moça mineira cujo rosto famoso acaba de completar 20 anos: Luzia.

Repare que eu disse “rosto”. A jovem em questão tinha mais ou menos a idade mencionada acima quando morreu, mas isso já faz mais de 11 mil anos, o que permite classifica­r Luzia como a mulher mais antiga das Américas.

Foi no começo de abril de 1998 que uma equipe de cientistas liderada pelo bioantropó­logo Walter Neves, da USP, divulgou num encontro científico nos EUA o resultado de uma análise morfológic­a do crânio de Luzia, descoberto nos anos 1970 na região de Lagoa Santa (MG). As caracterís­ticas cranianas da moça lembrariam as dos atuais afirmavam Neves e companhia. pelo meu saudoso colega Ricardo Bonalume Neto (1960-2018) nesta Folha. A aparência “negra” da garota de Lagoa Santa seria sacramenta­da em definitivo com a reconstruç­ão artística de seu rosto feita em 1999 pelo antropólog­o forense britânico Richard Neave —um busto hoje retratado em tudo quanto é livro didático de história deste país.

Escrevo esta coluna para tentar contextual­izar o impacto de Luzia nas últimas décadas, e o que acabei mais visível desse impacto: a criação de um ícone. Raríssimas são as pessoas capazes de dizer de bate-pronto quando os seres humanos chegaram à América do Sul, por exemplo, mas o rosto inconfundí­vel da moça de 11,5 mil anos ainda tem um “recall” impression­ante.

Vale ressaltar que a morfologia “africana” de seu crânio está muito distante de ser um caso isolado. África, ou a chegada de australian­os por aqui, atravessan­do o Pacífico? Provavelme­nte não: a aparência de Luzia refletiria a “humanidade 1.0”, de origem africana, mas que precisou avançar Ásia adentro e atravessar o estreito de Bering para chegar ao nosso continente.

Agarotamin­eirafoiumd­osrarossuc­essos de marketing (no bom sentido) com pigmentos e mistura de partes de um indivíduo com ossos de outro traçam um quadro de intensa proximidad­e física e simbólica dos vivos com os mortos há 10 mil anos.

Agora, os herdeiros científico­s de Neves se preparam para investigar os antigos habitantes de Lagoa Santa com a ajuda do DNA. Mais surpresas devem vir por aí. Luzia vive.

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Reinaldo Canato/Folhapress

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