Folha de S.Paulo

Construída com referência­s literárias, produção peca por excesso de cautela

- CÁSSIO STARLING CARLOS

FOLHA

O uso pouco comum de uma epígrafe, um verso do poeta William Carlos Williams, antes da primeira imagem anuncia “Severina” como um filme em diálogo com o texto e a matriz literária.

De fato, esse sinal se reafirma na voz que, num primeiro momento, apenas se ouve, narrando um trecho de “Ada ou Ardor”, de Nabokov, cujas palavras anunciam, como uma segunda epígrafe, o espírito da trama que o filme desenvolve­rá.

“A vida de um indivíduo consiste de certas coisas classifica­das. Divide-se entre as ‘coisas reais’, que não são frequentes e têm um valor inestimáve­l, as ‘coisas simples’, que são rotineiras e normais, e as ‘coisas fantasmas’, também chamadas de ‘nevoeiros’, como febre, dor de dente, decepções terríveis.”

Um terceiro signo literário entra em cena na primeira imagem de fato, quando a voz ganha corpo e vemos uma garota no centro de um grupo de leitura reunido no espaço de uma livraria.

O fantasma da literatura não deixará de assombrar todo o progresso da narrativa, na divisão, por exemplo, da estrutura do filme em prólogo, capítulos e epílogo, e no drama de R (Javier Drolas), dono da livraria que se apaixona por Ana (Carla Quevedo), moça enigmática que rouba livros.

A evocação dessa matriz preenche o filme com um charme nostálgico pelo livro como objeto-fetiche, algo que se guarda, que se dá ou que se troca, e ao mesmo tempo como um condensado de vida, de mundos, de ideias que se abre a quem se dispõe a contemplá-lo.

Nesse sentido, Ana é uma personagem impalpável, um fantasma que só ganha corpo na imaginação literária de R e na de outros homens possuídos pela febre dos livros.

Em seu primeiro longa individual, depois da experiênci­a de direção compartilh­ada com Daniela Thomas em “Insolação” (2009), Felipe Hirsch reafirma uma vontade autoral sem se encantar por exibicioni­smos formais ou pela ideia do “filme difícil”.

O prazer de tecer citações e o jogo de referência­s literárias não chega a fazer de “Severina” um filme intelectua­l. Mas o excesso de cautela e de cálculo, disfarçado sob o verniz literário, é que torna o resultado um tanto menor que sua ambição. DIREÇÃO Felipe Hirsch ELENCO Carla Quevedo, Daniel Hendler, Javier Drolas PRODUÇÃO Brasil/Uruguai, 2017 CLASSIFICA­ÇÃO 12 anos AVALIAÇÃO regular

Apesar desse relacionam­ento com artistas latinoamer­icanos, a opção de rodar um filme no Uruguai, falado em espanhol, foi circunstan­cial. “Severina” seria rodado em português, com atores brasileiro­s, em Porto Alegre. Para o diretor, a cidade ainda tem o cenário necessário para a história, com livrarias de rua. “Cada vez menos, mas ainda estão lá”, ressalta.

Investidor­es desistiram do projeto e ele precisou cancelar tudo. O produtor brasileiro Rodrigo Teixeira, do bemsucedid­o “Me Chame pelo Seu Nome”, chegou a ele com a chance de coprodução com a uruguaia Oriental Filmes. Veio então a reformulaç­ão do projeto para Montevidéu.

A livraria do filme era uma farmácia. “Não me pergunte como, mas meu diretor de arte, Gonzalo Delgado, colocou 30 mil livros lá dentro. O lugar se revitalizo­u e agora é um café, que se chama Farmacia”, conta Hirsch.

Todos os envolvidos na produção parecem compartilh­ar a paixão pelos livros. “São meus companheir­os”, diz Drolas, 46. “É muito difícil que eu vá dormir sem ler alguma coisa.”

Carla Quevedo, 29, mudou de apartament­o várias vezes desde que se mudou para os Estados Unidos. “Nessas mudanças, percebi que os livros são meu único patrimônio pessoal. Tenho uma relação obsessiva com eles.”

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