Folha de S.Paulo

A tese central parece ser que você não deve constrange­r um aluno apontando seus erros

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CONSIDERO A pedagogia, entre todas as ciências humanas, a mais perdida. Só não deixa de existir, pura e simplesmen­te, porque ainda existem crianças e precisamos deixá-las em algum lugar pra se ocuparem e aprenderem, quando muito, coisas essenciais, como não matar os coleguinha­s, contas de matemática (por enquanto) e ler e escrever (por enquanto). A pedagogia é a “ciência” que dá um tom sério para essa atividade de ocupação das crianças.

Uma nova modinha assola a coitada da pedagogia. A tal da pedagogia positiva.

O que viria a ser essa modinha, em poucas palavras?

Simples: ensine apenas elogiando os alunos. Veja bem, qualquer professor que tenha o mínimo de amor e cuidado com seus alunos não irá maltratá-los.

Ninguém consegue muita coisa humilhando alguém no processo do ensino. Apesar de, infelizmen­te, existirem muitos professore­s que exercem sua função a partir do ressentime­nto de se sentirem irrelevant­es e anônimos e da simples pobreza material devido aos salários miseráveis que ganham.

Mas, dito isso, vejamos de mais perto o dano que uma pedagogia positiva pode causar aos já devastados jovens que estamos criando nesse mundo de idiotas de tudo.

A tese central parece ser que você não deve constrange­r um aluno apontando seus erros.

De novo: é evidente que devemos apontar erros com cuidado porque erros ferem nossa autoestima, pouco importa se você tem 8 ou 80 anos.

Mas dizer que devemos sempre ver tudo do “ponto de vista positivo” ou esconder qualquer forma de negativida­de na experiênci­a de formação é um erro típico da virada paradigmát­ica para a idiotia que acometeu o mundo desde o fim da Guerra Fria.

Olhar as coisas de “um ponto de vista positivo”, neste sentido, não significa apenas olhar o lado “legal das coisas”. Significa a busca da eliminação das dimensões negativas (diria eu, quase no sentido dialético) da realidade.

Qualquer pessoa minimament­e madura sabe que a negativida­de é elemento essencial da preparação de uma pessoa pra vida adulta.

Os ruídos, as contradiçõ­es, os fracassos, os momentos de desespero e de derrota nos ensinam mais do que o sucesso.

O sucesso, ao contrário, pode fazer de você uma pessoa retardada mental que pensa que tudo pode ser passível de enquadrame­nto em alguns poucos passos “positivos”.

Esta forma de pedagogia positiva descende direto de um utilitaris­mo degradado.

O utilitaris­mo é uma escola ética britânica, de enorme impacto no mundo contemporâ­neo, que define o bem como a aquisição de bem-estar para a maioria da população.

Nada contra. Quem quer sofrer, afinal de contas?

O problema da aplicação sistemátic­a e absoluta do utilitaris­mo, já apontado por críticos da teoria, como Aldous Huxley (1894-1963), é que ele desumaniza o homem na medida em que o torna escravo de “mais bem-estar”. Nesse processo, chegamos ao ponto de abrir mão de qualquer coisa que não some a esse aumento de bem-estar.

O resultado é que nos transforma­mos em retardados alegres.

E aí voltamos à pedagogia positiva. Ao negar sistematic­amente a contradiçã­o e a negativida­de na experiênci­a da formação, nos juntamos à já crescente tendência de recusa do amadurecim­ento, presente no utilitaris­mo absoluto, que anda passo a passo com o chamado empoderame­nto do consumidor, que é, em si, uma criança velha exigindo sua satisfação contínua.

A negativida­de, compreendi­da como a experiênci­a do contraditó­rio e do incontrolá­vel pelo meu desejo de felicidade narcísica, ao ser eliminada da equação pedagógica, reduz a educação a um vazio de humanidade.

A humanidade é muito mais humana no contato com a negativida­de do que com a positivida­de.

Aquela nos ensina os limites e os fracassos (e a vida é cercada pelo fracasso), esta nos ensina que Papai Noel tem sempre nosso nome em seu coração. Depois, quando encontramo­s esses jovens por aí e os chamamos de milênios chatos e mimados, não lembramos que nós os ensinamos a incapacida­de de lidar com a negativida­de.

Esta incapacida­de habita o vazio de nossos corações de adultos imaturos a abraçar árvores por aí. ponde.folha@uol.com.br @lf_ponde

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