Folha de S.Paulo

Século errado

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O discurso de resistênci­a ao golpe que o PT vem fazendo é emocionant­e. Ao ouvir a fala de Lula na porta do sindicato dos metalúrgic­os, eu mesmo me senti transporta­do para as manifestaç­ões contra o regime militar dos anos 80.

O problema com essa narrativa é que ela está no século errado. Está faltando a ditadura contra a qual possamos nos insurgir. A condenação e a prisão de Lula se deram num contexto de normalidad­e democrátic­a, no qual as instituiçõ­es, com erros e acertos, vão cumprindo seu papel.

Na segunda metade do século 20, proliferar­am no mundo ditaduras de direita. Seu surgimento era favorecido pela geopolític­a global, que opunha os EUA ao bloco soviético. Foi aí que os militares brasileiro­s, com apoio norte-americano, deram um golpe e, por duas décadas, governaram o país com mão de ferro.

Esse tipo de ditadura, contudo, morreu com o fim da Guerra Fria. Como mostram Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em “How Democracie­s Die”, hoje, a forma mais comum de ruptura é aquela promovida por líderes eleitos que vão aos poucos deturpando as instituiçõ­es para que elas os favoreçam. É um processo que, ao menos inicialmen­te, conta com apoio popular. Exemplos concretos incluem a Venezuela de Chávez, a Turquia de Erdogan e a Rússia de Putin. É até ridículo imaginar que Michel Temer, com 6% de popularida­de, possa ser incluído nesse grupo.

Se alguém, no Brasil, teve a chance de caminhar nessa trilha foi justamente Lula. Nos 13 anos em que esteve no poder, o PT teria podido aparelhar órgãos de Estado como a Justiça, a Promotoria e a Polícia Federal, mas não o fez.

Não sei dizer se foi por genuína convicção democrátic­a, por falta de organizaçã­o ou por ausência de quadros concursado­s com os quais pudesse contar. Quero crer na primeira alternativ­a, mas, como já me enganei antes em relação à índole do partido, prefiro não arriscar nenhum palpite. helio@uol.com.br

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